A Procuradoria Geral da República já abriu um processo de instrução contra a Câmara Municipal da Praia por causa das denúncias de ilegalidades feitas pelo inspector de Finanças Renato Fernandes. Paralelamente, o PGR mandou comunicar ao MpD sobre o arranque desta investigação, um acto incomum que poderá pôr em causa, por um lado, o segredo de justiça e, por outro, a independência do poder judiciário em relação ao partido no poder.
O Ministério Público começou a investigar as supostas ilegalidades e presumíveis crimes de corrupção na Câmara Municipal da Praia, conforme as denúncias públicas feitas pelo inspector Renato Fernandes, na carta do seu pedido de fim da sua requisição para exercer o cargo de director de Auditoria Interna da CMP.
Entretanto, o que está a provocar estupefacção é o facto de a Procuradoria Geral da República ter mandado informar o MpD, na pessoa do secretário-geral do partido, Luis Carlos Silva, a abertura dessa investigação junto do Departamento Central da Acção Penal, na Praia.
O ofício da PGR nº 950/70.01/2023/2024, do passado dia 23 dese Fevereiro, diz o seguinte: “Na sequência da Vossa denúncia (ao abrigo nos artigos 60º, 61º e 71º do Código do Processo Penal), com relação à carta do director de Auditoria Interna da CMP, Sr. Renato Fernandes, enviado ao Presidente da Câmara Municipal da Praia, Sr. Francisco Carvalho, pedindo o fim da sua requisição no mencionado cargo, incumbe-nos, Sua Excelência o Procurador-Geral de comunicar que foi aberto instrução de um processo no Departamento Central da Acção Penal da PGR, registado omo Autos de Instrução nº 27/2023/2024, relacionado com o assunto”.
Juristas contactados por Santiago Magazine são unânimes em considerar esta postura do PGR como inadmissível, já que o Ministério Público, assim que tomar conta de qualquer queixa, abre um processo, se assim o entender, sem obrigação de dar satisfação sequer ao queixoso ou denunciante. “Quando muito pode notificar o denunciante posteriormente para prestar algum depoimento. O que aconteceu neste caso é um acto claro de promiscuidade institucional ”, observa um advogado. "Noutros países como o Brasil isso acontece e está na lei, o problema é que em Cabo Verde ainda não há o estatuto do investigado, que lhe permite saber que está a ser investigado, como sucede por exemplo com o arguido que tem de ser informado que é arguido e que tem uma investigação contra ele a decorrer", nota.
Um outro jurista considera que “mesmo não se tratando de um acto ilegal, é bastante questionável a atitude do Ministério Público, órgão detentor da acção penal, em informar um partido político, que não é um órgão de soberania, sobre os seus actos. Até se pode admitir, e também é discutível obviamente, que no nosso modelo de governação o PGR possa prestar contas ao Primeiro-Ministro, que o nomeia, mas a um partido político isso já é descabido. Em que é que o PGR se baseia para comunicar a um partido político os seus passos de investigação?”, questiona, realçando que “o Ministério Público, MP, não está vinculado a justificar os impulsos que deu às queixas ou denúncias que recebe, e fá-lo com base na praxis, com base na lei”.
Com uma análise mais generalista, mais um jurista abordado por Santiago Magazine chama a atenção para “relações de promiscuidade entre a PGR e o partido no poder”, que “rasga o princípio da separação de poderes, com base em diálogos paralelos camuflados. Nota-se clara subserviência por parte do Ministério Público em fazer questão de comunicar ao partido político que está no poder o que anda a fazer ou deixar de fazer. Isso explica muita coisa estranha que acontece e que não acontece na Justiça em Cabo Verde”.
O secretário-geral do MpD, Luis Carlos Silva, desdramatiza tudo isso, considerando tratar-se de um acto normal. “Nós é que denunciamos esse caso, enviando à Procuradoria a carta do sr. Renato Fernandes. E a procuradoria simplesmente nos informou que a nossa queixa teve seguimento. Portanto, creio eu tratar-se de um acto normal. A partir do momento que estabeleces relações de comunicação com a Procuradoria, eles dão feedback. Portanto, o que aconteceu foi que nos informaram que a nossa queixa teve seguimento”, esclarece Luis Carlos Silva, acrescentando que não é a primeira vez que a Procuradoria age desta forma. “Sempre que denunciamos algo nos informam se vai para a frente ou não. Por exemplo, em relação à nossa queixa sobre o Plano de Actividades da CMP de 2023, a PGR respondeu-nos dizendo que entrou fora do prazo legal”.
Ora, para os lados do PAICV, haverá nesse caso dois pesos e duas medidas a nível das relações com o Ministério Público. Apesar de não termos conseguido obter as declarações do secretário-geral do partido tambarina, Julião Varela, um jurista ligado a esse partido fez saber que “nunca o Ministério Público deu qualquer satisfação ao PAICV em relação às nossas queixas. E o MP, na verdade, não tem de o fazer, na medida em que, enquanto titular da acção penal, desencadeia as suas investigações de forma livre, sem pedir permissão e sem partilhar informações sobre o desenrolar do processo”.
Ainda assim, o nosso interlocutor aponta exemplos de denúncias feitas pelo PAICV que não mereceram o mesmo tratamento por parte da Procuradoria Geral da República. “Quando os deputados do PAICV apresentaram uma queixa para o MP averiguar eventuais indícios de corrupção na liquidação interna da TACV para a entrada da Binter, levantaram a sua imunidade parlamentar para poderem ser ouvidos, mas isso nunca aconteceu e nunca soubemos qual o desfecho desse processo. Aconteceu praticamente a mesma coisa em relação à queixa sobre indícios de tráfico de influência na produção dos célebres manuais escolares por empresa propriedade de familiares do primeiro-ministro, mas sem sequer ouvirem os deputados, o MP envia uma notificação a informar que o processo foi arquivado”.
A carta do pedido de demissão de Renato Fernandes do cargo de director do do Gabinete de Auditoria Interna da Câmara Municipal da Praia evoca procedimentos irregulares e ilegais que vêm sendo cometidos pela autarquia como razões para a sua saída.
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