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Humanização e responsabilidade do Estado
Colunista

Humanização e responsabilidade do Estado

Sete recém-nascidos morrem de uma assentada no Hospital Baptista de Sousa e o inquérito, divulgado esta segunda-feira, 5, com pompa pelo Ministério da Saúde, garante não ter detectado “erros nos procedimentos técnicos e protocolos clínicos no serviço de obstetrícia”, porque os recém-nascidos prematuros e prematuros extremos terão (olha o modo e o tempo verbal!) “falecido por sepse neonatal tardia”, infecção. Entretanto, o mesmo relatório que descarta responsabilidade humana e, claro, do próprio Estado nessa escandalosa falha na cadeia de obrigações e deveres, recomenda melhor capacitação na área da comunicação e liderança assim como humanização dos profissionais da saúde. Quer dizer, implicitamente reconhece que houve falha humana, mas de forma tão fria e desumana aponta para a gravidez de risco das mães e para um “simples” caso de infecção generalizada, como que despencada do céu sobre essas indefesas e infelizes almas. Só que não.

Sepse neonatal tardia”. Mas que raio vem a ser isto?, perguntei a mim mesmo antes de começar a indagar sobre a doença e poder esclarecer aos leitores os cuidados a ter, coisa que, curiosamente, nem o relatório, nem o comunicado do Ministério da Saúde fizeram.

Ora bem, “sepse neonatal tardia”, geralmente ocorre após as primeiras 48 a 72 horas de vida e “está relacionada a fatores pós-natais como, por exemplo, procedimentos invasivos em neonatal UTI (n.d.a.: por exemplo aplicação de vacinas, injecções, nas urgências) e transmissão horizontal por meio das mãos dos profissionais de saúde que entraram em contato com o bebê", ensina o IPEMED, uma instituição brasileira de ensino especializado em pós-graduação médica, o mesmo diz a prestigiada Pfizer.

Qualquer tipo de contágio dessa doença acontece, segundo quem entende do assunto, por acção directa dos profissionais da saúde, sobretudo se não esterilizarem as mãos antes de aplicarem vacinas ou injecções nos bebés, tão simples quanto isto. É que a bactéria que causa a sepse anda na pele, um cortezinho a fará entrar no organismo e provocar infecção generalizada e morte. No caso dos recém-nascidos, o manuseio descuidado de seringas e agulhas por parte por médicos e enfermeiros terá o mesmo fim.

Se isto é cristalino para a comunidade científica, como é que um relatório de uma comissão de inquérito escolhida a dedo pela ministra da Saúde consegue não só omitir as causas da sepse neonatal – e os perigos a evitar, para não se repetir, Deus livre, tragédia similar -, como descaradamente levanta o indicador em riste contra as gestantes?, coitadas. Sim, as conclusões do inquérito, divulgadas esta segunda-feira, 5, pelo Ministério da Saúde, indicam que todas as gestantes cujos bebés foram a óbito no período em estudo tinham indicações para seguimento na consulta de alto risco.

Caramba, se a infeção é pós-natal (depois do nascimento da criança) como é que as mães, que de acordo com esse palavreado do Ministério da Saúde estariam com gravidez de risco, não estão infectadas e os seus bebés sim? Como muito bem questiona Domingos Cardoso na sua coluna desta terça-feira no Santiago Magazine, “Por que motivo, a comissão ignora os fatores pós-natais e a transmissão horizontal por meio das mãos dos profissionais de saúde que entraram em contato com o bebé?”...

Obviamente que o Ministério da Saúde não irá responder a essas questões, nem tão-pouco se a ministra, Filomena Gonçalves, irá pedir demissão por tamanha falha na cadeia de responsabilidades. Pior ainda por se ter produzido um irresponsável, patético e criminoso relatório de inquérito que culpa gestantes por infecções ocorridas após o nascimento dos recém-nascidos e iliba sem qualquer pudor o trabalho dos profissionais de saúde quando o Ministério da Saúde de cara limpa vem dizer que a assistência às mães no serviço de obstetrícia “respeitou os procedimentos técnicos e os protocolos clínicos nacionais”, e que, do ponto de vista humano, ela foi “admissível”.

“Foi aplicado o protocolo nacional para o manejo de situações de rotura prematura de membranas e de ameaça de parto pré-termo”, reiterou o MS, em comunicado partilhado com a imprensa, mas o relatório sugere precisamente a elaboração de um plano anual de supervisão do cumprimento dos protocolos nacionais. Enfim...

De tão patético, o relatório mordeu a própria língua ao recomendar, como solução para evitar próximas mortes, reforçar ações de capacitação na área da comunicação, humanização e liderança dos profissionais; elaborar um plano anual de atualização/supervisão do cumprimento dos protocolos nacionais; “promover a cultura de discussão interna dos óbitos não esperados e dos casos de não conformidade”; integrar um psicólogo nas equipas, “melhorando a assistência aos pacientes”;  “melhorar a articulação e a interface entre os serviços da atenção primária, secundária e terciária”;  introduzir reforço a nível dos recursos humanos por forma a melhorar a qualidade na prestação dos cuidados”; e “melhorar a comunicação entre o serviço e os pacientes”, para a tornar “mais eficaz e eficiente”.

Ou seja, medidas estritamente relacionadas com a conduta dos seus profissionais do sector, entendido aqui como médicos e enfermeiros, porque seguramente não serão capacitações e formações em liderança e humanismo nos serviços de atendimento hospitalar destinadas às faxineiras e condutores ou os administradores, curiosamente os únicos que acabaram penalizados pelas mortes dos recém-nascidos do HBS, enquanto quem lidou com as crianças (médicos e enfermeiros) beneficiam do conforto corporativo dos colegas da comissão de inquérito e a ministra da Saúde, responsável máxima exibe com pompa um falso resultado de um inquérito que parece encomendado a manter no cargo, mas que bem poderia ter-lhe tirarado o tapete e o trono, digo, ser demitida.

Pena que a oposição deste país seja esta sobremesa de ‘ovos moles’ e não pede a cabeça da ministra, nem confronta o Governo sobre este caso chocante, revoltante e inadmissível. Mas pronto, também ela, a oposição, não ata nem desata.

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine