As cidades dos privilégios
Colunista

As cidades dos privilégios

Rigor e disciplina, organização, sistematização e prática quotidiana sobre o trabalho, com o sentimento da dedicação vertido à construção. O trabalho da pessoa consigo própria. Tomar a consciência de si é fundamental. O trabalho não é apenas pessoal, também é social, vai além da pessoa. É o conjunto orgânico de indivíduos que difere da realidade apenas individual. Deve muito ser o trabalho sobre si próprio e o trabalho em prol de todos. É o estudo, a investigação, a ação prática e teórica e teórico-prática. É igualmente a condução das profissões nas suas orientações sociais e económicas. O pegar na caneta, o pegar na enxada. O pegar no teclado do computador, no balde de cimento, na carpintaria, na metalurgia. Hoje que existe tecnologia de grande alcance e de recorte prático-funcional e a informática. Hoje que temos a possibilidade de transformar e armazenar água do mar em água para consumo das pessoas, animais, sustento de plantações e rega de cultivo. Inclusivamente de alterar paisagens para melhor, em benefício do planeta. Hoje que adaptamos o vento e o sol como fontes de energia da humanidade e dos animais, sempre em favor do planeta.

Neste sentido, a consciência de si e a atitude crítica, interrogativa perante as realidades que nos circundam, nos limitam e nos enquadram nas sociedades e no Mundo são modos de a pessoa permanecer atenta, aprendiz, humilde, dialética, ativa e condutora. Há que manter uma permanente simbiose e recíproca relação entre a consciência de si, do mundo, a interrogação filosófica no caminho do aprendizado e a realidade empírica, aquela que nos tange permanentemente o espírito e o corpo. Capacidade de criticar, capacidade de julgar, capacidade de decidir.

A dessincronia entre os teóricos de gabinete laboratorial e o atraso da realidade política dos espaços políticos e sociedades leva a que aqueles achem que a sua vida não depende de toda uma agremiação de pessoas com vontades, razão e sentimentos que ultrapassa em toda e qualquer medida a veleidade seja de que indivíduo for. Aquele desacerto existencial dos indivíduos de gabinete gera neles uma ilusão decrépita (ou talvez malvada) de que, além de não necessitarem do povo, este deve segui-los e submeter-se aos seus ditames. Quer isto dizer que a classe que vai controlando o Poder existe apenas para si, sem mais ninguém, pensa apenas no seu nicho existencial e somente na sua subsistência, sobrevivência, abundância, não importando as outras classes sociais que vivem decadentes ou vão pela estrada da decadência.

Para perceber-se o presente, procurar pressentir, vislumbrar e apontar um caminho ao futuro é premente conhecer o passado. Com perturbação permanente - instabilidade social e política - , sem tranquilidade na vida (ataraxia) - se comida, habitação e educação não estão garantidos. Cada dia que nasce é uma aventura -, dificilmente existem condições para se atingir uma consciência profunda do ser, enquanto pessoa totalmente independente e livre. Sendo indivíduos, sempre precisamos uns dos outros, complementamo-nos. A nossa finalidade é gregária.

O processo de descoberta pessoal e social, para desvendar-se a consciência social, a nossa fenomenologia, a pessoa deve entender-se e partir da sua consciência individual como ser livre, volitivo e independente.

Ora, processos estranhos existem de entender-se e querer conduzir toda uma sociedade ou um Estado. O século XVIII e a primeira metade do século XIX, na Europa e com fortes reflexos durante o século XX, foram profícuos em pensamentos e ideias que levavam sempre a supor a existência de rebanhos desorganizados, ignorantes, deficientes e impreparados, necessitados da luz divina emanada dos supremos governantes para a condução daqueles, a par, na época, dos filósofos que inspiraram a revolução francesa: Rosseau, Montesquieu e Voltaire.

Sobre a Alemanha prussiana do século XIX, Wilhelm Liebknecht considerava que naquele país “o governo foi separado do povo e colocado acima deste, como algo superior. Era considerado um ser supremo dotado, fora de toda a lógica, de atributos como a Omnipotência, a Omnisciência, a Misericórdia, a Infabilidade…, sendo o povo privado de toda a capacidade de raciocinar e de julgar de maneira independente, sendo-lhe reconhecida apenas uma obrigação: a de acreditar cegamente no governo, a de lhe obedecer cegamente” (Wilhelm Liebknecht, Zum Jubeljahr der Märzrevolution – O Jubileu da Revolução de Março - pp. 8-9, 1898).

Ora, estas que deviam ser realidades anacrónicas, que não deviam existir, foram, infelizmente, transmitidas, copiadas, adotadas e assimiladas, pelo pensamento de muitos, diria praticamente a totalidade dos governantes e ex-governantes, bem como políticos de vários países falantes da língua portuguesa, tornados independentes. Pensamentos e conduções políticas semelhantes àqueles que vão permanecendo na Coreia do Norte, Guiné-Equatorial, ou uma simbiose de ambos, entre outros países. Infelizmente existem países da nossa “Comunidade” que, a coberto de constituições democráticas do país, praticam aquele género de governação de púlpito superior, acima do povo. A governação iluminada, o povo ignorante que precisa de ser educado e ensinado a seguir cegamente aqueles que são superiormente dotados sobre a arte da política e da governação. Contudo, praticam valores anti-sociais, valores violadores dos direitos humanos e antidemocráticos.

Um Estado existe por causa da sua população. Mesmo o Estado do Vaticano. Um Estado não existe por causa de quem diz governar. Naqueles, quem diz governar considera-se superior e infalível em relação ao povo. Este apenas deve aceitar a condução unilateral dos destinos de uma sociedade, dirigidos superiormente. Privam as gentes de qualidade mínima das condições materiais de existência, de estudar, de raciocinar, de julgar de modo independente. Apenas querem ver um povo inteiro a seguir, a acreditar, sem pestanejar, sem sequer poder contradizer. Há uma total irracionalidade, bem como irresponsabilidade, neste modo de relacionamento humano e de entender-se a governação. Ora o que na realidade factual da vida pratica-se nesses países da nossa "Comunidade" é uma manifesta e total divergência entre a dita "teoria " e a prática. O que se fala e se escreve, no confronto com o que se age e conduz-se no quotidiano social e político.

Governar é entender e desenvolver a dialética, a complementaridade harmoniosa entre as pessoas e entre essas e quem foi eleito governante, democrática e legitimamente. É entender a parte e o todo numa relação multilateral e holística. A História e as sociedades são a atividade consciente e inconsciente das mulheres e dos homens. É imperativo, é essencial para o espírito humano desenvolver-se livremente.

Assim, a tarefa principal para um povo libertar-se daquele jugo infernal de abuso e exploração (implementação e manutenção sempre a agravar de um exército de desempregados, sem ensino, em carência material, frágeis, destinado a aceitar qualquer aleivosia e ataque às suas precárias e desarmadas condições de vida) é tomar consciência de si, de quem é, da sua História, isto é, do seu percurso espácio-temporal. É imperiosa a existência de uma consciência comunitária social e económica. É imperiosa a existência de uma massa crítica atuante, de espíritos críticos concretamente intervenientes, capazes de serem portadores e de transmitirem a toda uma sociedade os valores histórico-culturais, a consciência de cada um e de todos.

Sem uma consciência histórica, social, económica, cultural e política, os povos continuarão ignorantes, explorados e subjugados por nichos de indivíduos concentrados nas cidades dos privilégios, onde garantem para si próprios, em prejuízo da população e da sociedade, qualidade de vida, estilos caros de comportamento socioeconómicos, luxos exacerbados e ofensivos à gritante, destrutiva pobreza que os rodeia, afundando e alargando cada vez mais o fosso entre as classes sociais. De um lado, os privilegiados das cidades dos privilégios. Do outro, fica o restante da população: uns com habitação e casa de banho, outros lançados ao relento e ao abandono. Alguns com alguma escolaridade, outros privados totalmente dela. Isto é, enquantos uns - aqueles das cidades dos privilégios - parecem viver em redomas de cristal e de porcelana, outros parecem atirados para autênticas savanas de refugiados.

Para que aquele pequeno grupo de privilegiados continue a existir é necessário população. É necessário usar, usufruir, aproveitar e explorar quem é elemento essencial para que uma sociedade exista: as pessoas!

O Estado, representado pelos seus governantes, que promova a discriminação, acentue as falhas e os fossos sociais e económicos existentes entre as classes políticas e socias, que não leve em conta a realidade concreta da generalidade das pessoas - desprezando-as, tratando como quase seres inexistentes - que constituem o fundamento sem o qual uma sociedade e um Estado nunca existirão, gerando a desconfiança, o desconforto e a zanga por parte do povo, sujeita-se a ver este, mais cedo ou mais tarde, a rebelar-se contra as instituições injustas, imorais e contra os governantes "superiormente dotados", pondo, desta feita, um fim às cidades dos privilégios. Elas e eles têm, neste mundo de hoje, têm os seus dias contados, pois estão e são facilmente identificáveis.

José Gabriel Mariano, Lx

Aprender prejudica

I

A linguagem e a língua

Não têm que ser sonoras

Incomodamente gritantes

Inestéticas

Podem ser silenciosas

Também

Estéticas e ciciantes

II

Porque aprender prejudica

Porque conhecer afunda

Prejudica a ignorância

Que vem por mal

Que não vem por bem

Afunda o medroso desconhecimento

Aquele sentimento acobardado

Inferioridade exclamação na comparação

De tecer a perfídia

Em torno de medo próprio

Ocultando deslealdades

Ao ser essencial

Promovendo aniquilamento selado

Sem ser calado

Nada distraído

Ao que é fundamental à distração

III

É atirar pérolas aos porcos

Como é uso dizer-se

Não que se atire pérolas

Menos a porcos

Seria uma incoerência

Porcos não se alimentam delas

Nem se interessam por pérolas belas

Mas atirar notícia nova

Antiga, desconhecida

Aos desleixados

Aos desinteressados

Pobres coitados incompreendidos

Vitimizados pela filosofia

Dar comida para o espírito

Para o corpo

Aos consumidores indolores

Indefectíveis inconscientes

Aos Fungos colantes

Utilizadores

Lesadores da ingenuidade alheia

Será também uma incoerência

Indefectíveis inconscientes

Não se alimentam na construção

Comem da destruição do construído

Para não construir no seguido

Raphael d'Andrade,

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