Tudo indica que a pandemia da Covid-19 veio para durar, sendo neste momento, uma das principais preocupações, não só dos Governos, mas também dos cidadãos pelo mundo fora. Em Cabo Verde, a questão coloca-se com maior acuidade, devido às suas especificidades e vulnerabilidades económicas, comerciais, sociais e sanitárias.
Num contexto de emergência e de incertezas, a primeira preocupação das autoridades nacionais foi e continua a ser a proteção da saúde pública e do emprego através do reforço dos equipamentos e do pessoal sanitários, do apoio direto às famílias e às empresas tendo, nestes quesitos, o Governo Central e o Poder Local andado globalmente bem, apesar de falhas registadas a nível da implementação de algumas das medidas adotadas, entretanto aceitáveis num quadro novo e atípico.
A obrigatoriedade do uso de máscaras na via pública não parece ser uma questão consensual em Cabo Verde, mas também não o é noutras paragens, ao avaliar pelas noticiais vindas a público na comunicação social, mas parece um sacrifício necessário face à ameaça da pandemia e às suas desastrosas consequências sobre a economia e as famílias, aos custos que mais cedo ou mais tarde as cabo-verdianas e os cabo-verdianos serão chamados a suportar, à indisciplina que grassa na nossa sociedade e à salvaguarda dos direitos dos demais cidadãos e do bem comum. É de referir que esta prática não é nova sendo aplicada, sobretudo nos domínios da proteção e defesa da saúde pública e dos interesses dos consumidores, incluindo o próprio Estado.
A França impôs a partir de 28 de agosto último, o uso obrigatório de máscaras na via pública em París, Seine-Saint-Denis, les Hauts-de-Seine et le Val-de-Marne, para cidadãos maiores de 11 anos por forma a fazer face ao aumento de casos da Covid 19, tendo o Ministro da Saúde desse país defendido a sua utilização progressiva para o conjunto do território nacional, em função da situação sanitária, devendo em estabelecimentos de ensino serem utilizadas, tanto no interior como no exterior. Espanha e Marrocos são outros países que adotaram a utilização de máscaras na via pública para fazer face à pandemia.
Ainda, o Ministro da Saúde do país do ‘Liberté, Égalité, Fraternité’, a França, destaca o carater essencial das máscaras na luta contra a crise sanitária, ao mesmo tempo que reconhece a existência de um custo para o poder de compra dos franceses que deve ser devidamente considerado, designadamente pelos mecanismos da sua distribuição gratuita aos cidadãos mais vulnerais através dos serviços competentes do Estado.
As posições expendidas na comunicação social pelas altas autoridades públicas - Presidência da República, Parlamento e Governo - e pelos partidos políticos representados na Assembleia Nacional não são um bom augúrio para uma solução que deve conformar com a Constituição, mas que não pode furtar-se aos direitos dos outros cidadãos, à realidade económica nacional e à vulnerabilidade da maioria da população.
Cabo Verde enfrenta um dilema com duas faces de um mesmo problema sendo de um lado, o zelo cerrado ao cumprimento da Constituição da República e, consequentemente, dos direitos inalienáveis dos cidadãos, o que é normal num Estado de direito democrático, de outro lado, a salvaguarda da saúde pública, da economia e da segurança alimentar das populações, deveres dos quais o Estado não pode abdicar, em circunstância alguma, sob pena de deixar de cumprir com as suas obrigações, de todo inaceitável por estar também plasmada nessa mesma Constituição.
Se é notória que essa pretensa introdução da obrigatoriedade do uso de máscaras na via pública teve o mérito de ‘chamar a capítulo’ as Deputadas e os Deputados nacionais num assunto da maior importância e atualidade, como é a defesa do povo que os elegeu e do qual são simplesmente legítimos representantes, não deixa de causar alguma preocupação quando as opiniões referidas no parágrafo anterior parecem focalizar apenas em aspetos jurídico-constitucionais, deixando de fora outras questões importantes de política comercial, nomeadamente relacionadas com o acesso, de forma sustentável – produção, importação e comercialização- às máscaras, incluindo os serviços inerentes à sua disponibilização às famílias numerosas, aos desempregados e aos mais vulneráveis.
É de referir que o setor do comércio interno e externo de bens e serviços foi totalmente liberalizado em Cabo Verde desde 1999 (Decreto-Lei nº 3/99, de 1 de fevereiro), com exceção dos produtos de primeira necessidade, também designados de essenciais, liberalizados em 2005 (Decreto Lei nº 69/2005, de 31 de outubro), tabaco e seus derivados, medicamentos e combustíveis que continuam a ser importados em regime de exclusividade, respetivamente pela Sociedade Caboverdiana de Tabacos (SCT), Empresa Pública de Produtos Farmacêuticos (EMPROFAC), VIVO Energy (Ex- Shell Cabo Verde) e Empresa Nacional de Combustíveis (ENACOL), bem como de armas e munições que apenas podem ser importadas pelas instituições de defesa e segurança. As exportações foram totalmente liberalizadas e dispensadas de licenciamento em 1987, estando apenas sujeitas ao registo prévio junto das entidades competentes.
O licenciamento do comércio a retalho foi transferido para as câmaras municipais em 1991, enquanto que a competência para o licenciamento do comércio a grosso foi delegada nas câmaras de comércio em 2000.
Os preços de bens e serviços foram totalmente liberalizados em 2006 (Portaria 12/2006, de 12 de junho), tendo sido acompanhados de criação e instalação de entidades reguladoras nos domínios económicos, da saúde e da segurança alimentar. Assim, o mercado passou a funcionar, essencialmente, com base nas leis da oferta e da procura.
A lógica de deixar o mercado funcionar e, consequentemente, da aposta tout court nas capacidades de regulação do mercado e das agências reguladoras, reconhecendo, porém, a necessidade e a importância destas últimas para o normal funcionamento da economia e a salvaguarda dos direitos dos consumidores, são insuficientes e, diríamos mesmo, perigosas para um Estado frágil como Cabo Verde, sobretudo pela não delimitação clara daquilo que são as funções da Administração Pública Strictu sensu e das agências reguladoras, com prejuízo para a definição e implementação de políticas comerciais. Esta questão não é nova, nem para os Governos, nem para a ciência económica, sendo dado assente, segundo vários autores, entre os quais Désire (1999) e Yarima (2016), que o mercado comporta virtualidades, mas também disfunções que devem ser corrigidas, visando potenciar essas mesmas ‘virtualidades’, proteger e/ou incentivar os setores mais frágeis da economia que não conseguem competir, num primeiro momento na arena internacional, em particular pela via do desenho e implementação de políticas públicas que favorecem a produção, as economias de escala e as negociações comerciais, sendo estas áreas essencialmente de intervenção do Governo através da Administração Pública, designadas ‘medidas de apoio ao comércio’.
Os preços das máscaras importadas no mercado passaram de cerca de 15 ECV ( Escudos Cabo-verdianos) por unidade, antes da Covid-19 para 110 EVC por unidade nos primeiros meses da pandemia, passou para 30 ECV por unidade no grossista e 50 a 60 ECV por unidade no retalho, refletindo bem o disfuncionamento do mercado, o que é extensivo ao mercado de produção interna de máscaras comunitárias, cujos preços de vendas ao público foram, inicialmente, fixados pelo Governo em 235 ECV por unidade, para depois, serem comercializadas por menos de 100 ECV por unidade, com reflexos no planeamento das empresas produtoras, para além de possibilidades de concorrência desleal e de problemas de proteção da saúde pública.
Neste contexto, além de isenções aduaneiras já adotadas na importação de máscaras, medidas complementares de proteção efetiva da produção nacional, como subsídios da produção e de preços, medidas de salvaguarda, promoção de economias de escala e de centrais de compras e de distribuição previstas nos regulamentos comerciais cabo-verdiano, regional e internacional, em particular nos quadros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem ser equacionadas e debatidas em sede da eventual discussão do diploma do Governo sobre o uso obrigatório de máscaras na via pública, a ser submetido ao Parlamento, mas, para além disso, na definição e implementação da politica comercial geral, por forma a que a nova Lei e outras medidas que venham a ser adotadas pelas autoridades competentes para fazer face à pandemia da Covid-19 não sejam fontes de promoção de desigualdade de oportunidades, de concorrência desleal e, na prática, de violação dos direitos dos consumidores e de conflitos desnecessários entre o Estado, as empresas e as populações. Com efeito, para se implementar o uso generalizado de máscaras, há que garantir, em primeiro lugar, as condições de acesso por parte de toda a população.
Face ao exposto, a discussão que se espera dos Senhores Deputadas e Deputados na Casa Parlamentar do projeto de diploma do Governo sobre o uso obrigatório de máscaras na via pública, longe de se focalizar em questões filosóficas, ideológicas ou interesses pessoais e/ou políticos, de dar primazia para a bondade ou não da Carta Magna em si, de quem é mais ou menos democrata, questões essas são contas para outro rosário e, sendo assim, deve abordar a natureza e a importância das máscaras neste novo contexto de pandemia que se desenha longo, nomeadamente o seu eventual enquadramento futuro como um bem essencial e facilitar as medidas que o Estado e os Municípios têm a obrigação de adotar para garantir a sua realização efetiva através da definição e implementação de medidas de políticas pública e comercial adequadas.
*Licenciado em Relações Económicas Internacionais; Pós-graduado em Economia; Mestre em Integração Regional Africana
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