A estória do Ti Lobo e do Chibinho transporta-me à minha feliz menineza passada em Luanda-Angola, com os meus pais e seis irmãos, todos vindos da mesma forma.
Antes de deitarmos, por volta das 20h, depois de banhados, jantados e pijamados com o pó talco já espalhado pelos corpinhos, e após termos desejado boa noite ao pai com um beijinho na testa, - regra esta que não podíamos transgredir, em sinal de boa educação e respeito pelos mais velhos -, lá íamos nós, eu e quatro depois de mim, em carreirinha para quarto para ouvirmos, com ansiedade, uma nova aventura do Chibinho e Ti Lobo, que a mãe contava com emoção, drama, suspense e mestria.
As estórias que a mãe contava-nos nunca eram iguais, baseadas nas tradicionais, ela sempre dava um toque de criatividade, próprio dela, e transpunha para exemplos da vida real, para que pudéssemos no fim tirar as devidas ilações sobre a moral da história.
Mas do Chibinho e do malandro do Ti Lobo, retive na minha memória, até hoje, o seguinte: a humildade da inteligência vs a arrogância da esperteza saloia.
Ou seja, aprendi que as pessoas que são inteligentes e que cultivam o conhecimento e o saber não precisam de ser arrogantes para serem respeitadas e ouvidas. Esta capacidade nasce com todo o ser humano, mas que deve ser desenvolvida desde cedo, com estudo, pesquisa, análise, questionamento, e discussão, deve ser aplicada em toda as áreas em que intervimos e socializamos com os outros seres humanos.
Já a esperteza, é tão só “habilidade” dos que são preguiçosos mentalmente, e que acham que podem enganar os outros com falinhas mansas, ou com estratagemas para lhes passar a perna, para ganhar vantagens pessoais indevidas e não justas, partindo do pressuposto que estes são menos espertos, ou parvos, ou então aproveitam-se da falta de conhecimento e informação dos que visa ludibriar. Ora aqui neste particular a relação, à partida, é desigual.
Claro que o meu herói era o Chibinho que com a sua inteligência e sabedoria levava sempre a melhor ao malandro do Ti Lobo, que não sabia nem utilizar a sua vantagem etária, pressuponho, para enganar o mais novo.
Mas este pequeno intróito que transportou-me a uma das melhores fases da minha vida, era só para permitir-me um paralelismo em relação à realidade político-partidária de Cabo-Verde, tendo por base a minha percepção e conhecimento empírico, dos mais de vinte anos de vivência em Cabo Verde.
Acompanhei e acompanho com muito interesse, porque julgo ser um dever de qualquer cidadão crioulo, e desde das primeiras eleições multipartidárias de 1990/1991, o movimento dos actores partidários que subiram ao palco do embate político, numa altura em que se dava os primeiros passos. Antes da realização destas eleições foi criado todo um quadro jurídico-constitucional, que permitisse a realização serena e tranquila dos sufrágios almejados.
Do partido então no poder houve sempre, boa-fé, disponibilidade e abertura ao diálogo, ao contrário do que acontece em outras paragens do nosso continente, para consensualizar as melhores soluções com os movimentos e actores políticos que foram surgindo, como foi o caso do MpD, que a partir de uma declaração política de princípios transformou-se num partido político.
É de se sublinhar, por ser facto histórico, que o calendário eleitoral foi negociado com este movimento, inclusive, a ordenação da realização das eleições gerais, tendo ficado primeiro as legislativas, para Janeiro de 1990, e depois as presidenciais para Fevereiro deste mesmo ano.
Pude reparar que as primeiras campanhas eleitorais e os discursos políticos feitos, principalmente por parte do MpD, eram muito virulentos, assentes no panfleto anónimo de escárnio e maldizer do adversário, que para aquele parecia ser o inimigo a abater, como se de uma guerra civil fratricida se tratasse.
Decompondo o discurso que se passou aos eleitores, e no contexto de euforia após a abertura política, ocorrida a 19 de Fevereiro de 1990, anunciada publica, e orgulhosamente, pelo Comandante Pedro Pires, então Primeiro-Ministro, reparei que várias mensagens transmitidas em comícios e nos tempos de antena, não passavam de discursos populistas ocos, eivados de inverdades, até ódio, diria, e referindo-se a factos muito deles fabricados e difamatórios, como por exemplo:
Que o então PM, Comandante Pedro Pires, possuía contas bancárias astronómicas na Suíça;
Que os então governantes eram uns “mamadores” da coisa pública;
Que pertenciam a um partido velho e caduco que viera do mato;
Que o PAICV era um partido ditador e totalitário;
Que as crianças deviam correr arco na “Txada”;
Que estes não deviam estar “espartilhados” em estruturas juvenis partidárias;
Que os do “partido velho” não tinham competência, o que devia assentar, para quem o disse, na habilitação de um curso superior, de preferência em direito ( os tais “doutoros”...);
Que o PAI era um partido comunista, e talvez comesse criancinhas…;
Que o PAICV era contra a religião;
Que o progenitor do então PM era um assassino sanguinário;
Que o PAICV era um partido que não respeitava os direitos humanos e as liberdades dos cidadãos;
Que o PAICV dava choque “na ove” dos seus opositores;
Que a porta-voz do PAICV era uma put...-voz;
Que a mesma falsificara os seus elementos curriculares e académicos;
Que o PAICV devia ser aniquilado e dizimado;
Que o MpD era o partido da Mudança, da Liberdade e da Democracia;
Que os rebentolas eram os verdadeiros democratas, liberais e competentes;
Que quando o MpD fosse governo ia descobrir quem foi o assassino do Dr. Renato Cardoso;
Que iam criar uma classe empresarial junto ao ou do poder (MpD), e muito, muito mais. Storia i faktu e mutu txeu, nha guenti!
Isto tudo dito por altos dirigentes do novel partido, perante um povo sedento de exercer o seu direito cívico, e de saber o que era isso da tal da democracia, só podia passar como verdades cristalinas, não se cuidando, na altura, de saber qual era, de facto, o verdadeiro programa de crescimento e desenvolvimento de Cabo Verde, que então os auto-intitulados salvadores da pátria propunham-se ou deviam a realizar.
Ou seja, houve um aproveitamento indevido da boa-fé do povo cabo-verdiano, e talvez, da falta ou pouca informação do que fora feito nos quinze após a Independência Nacional, em que da terra castanha, seca e árida, construiu-se um Estado de Direito, um sector empresarial estatal, garantiu-se o abastecimento público e de distribuição nacional de bens essenciais, criou-se e manteve-se, escrupulosamente, um sistema credível e cumpridor de pagamentos internacionais das importações realizadas, manteve-se níveis bons de stocks de divisas (em 1991 aquando da entrega do poder ao MpD, o nível de divisas em stock ultrapassava os três meses), manteve-se um aparelho da Administração Pública a funcionar, fez-se um grande investimento na formação superior dos cabo-verdianos, mas de forma planeada de acordo com as, então, reais necessidades de desenvolvimento do país, e de acordo com a prestigiosa cooperação dos países amigos, criou-se uma imagem internacional de respeito e credível, entre muitos outros, e que se entregou à alternância partidária eleita à data.
Paralelamente, o movimento ventoinha, veiculava, também, com acuidade um sentimento de ódio, de vingança e de perseguição a todos os que não seguiam a mesma cartilha do MpD.
Lembro-me, a este propósito, que saia da minha casa em Achadinha, e deslocava-me a um comício presidido por Pedro Pires, pelo que enverguei a minha camisola do PAICV.
Ao sair de casa fui abordada por jovens e um amigo ligado ao movimento, que me insultou de todos os nomes possíveis, passando pela minha mãe, e papagueado o discurso ouvido nos comícios, que era mamadora, comunista, and so on. Resolvi, para não me arreliar mais, voltar para casa e trocar de camisa para uma mais neutra… e lá seguir ao meu destino.
Após as eleições gerais, três grandes factos marcaram-me profundamente, pela negativa neste período, que devia ter sido bonito e histórico, a saber: a vaia estrondosa, diria mesmo agressivas, que fizeram ao Comandante Pedro Pires desde que saiu da sede do PAICV, após o conhecimento efectivo da derrota, até à sua residência oficial no Plateau. Num ápice, os cabelos do Comandante viraram brancos, como agora os tem.
O apedrejamento selvático da sede do PAICV, à frente do Bispado, pela multidão que se manifestava de contentamento, e algo mais…, pela vitória do MpD. Além de terem sitiado a referida sede, não houve até hoje um pronunciamento oficial do MpD repudiando tais actos…
O último, entre muitos outros que ocorreram após o empossamento, do tal do partido competente, da democracia e da liberdade, foi a realização do enterro de Pedro Pires, em que com uma urna em mãos, militantes ou amigos ou simpatizantes do partido então vencedor, percorreu todas ruas e becos do Plateau, carregando o cadáver do que devia ser o Comandante. Saia, então, do Mercado Municipal e deparei-me, à frente do então Voz di Povo, com o que deveria ser cortejo fúnebre.
Até hoje não houve sinais públicos e oficiais, pelo que eu saiba, de repúdio de tais actos, que não abonaram a jovem democracia, que devia ter pugnado pelo respeito pela diferença e civilidade, próprios de qualquer sociedade com civilidade.
O que ocorreu depois de Fevereiro de 1991 até 2001, e para os jovens crioulos que à data tinham pouco menos de 10, 11 anos, sugiro que leiam: os Boletins Oficiais (BO) que deram à estampa depois de 19 de Fevereiro de 1991 (este, em particular, é “saboroso”); as actas de todas as sessões da Assembleia Nacional, em especial os referentes à eleição dos Vice-Presidentes da Mesa, em 1991, à discussão e aprovação da CRCV de 1992, à aprovação dos novos símbolos da Republica, do processo de privatizações das empresas estatais e institutos públicos, do caso do Embaixador Estrela, do caso ENACOL, do caso das profanações das igrejas e símbolos católicos, do caso da auto-suspensão do mandato do cargo de Primeiro-ministro, então, Dr. Carlos Veiga, etc.
Além disso, poderão analisar os documentos governamentais referentes à extinção da Central Sindical UNTC, à nacionalização do Centro Social 1º de Maio e do IAC, em São Martinho.
E se quiserem continuar nesta peregrinação à história da democracia crioula da década de 90, poderei aconselhar que se desloquem até ao Tribunal da Praia e ao STJ, e leiam com atenção os acórdãos proferidos nos casos de transferências compulsivas, sem processo disciplinar prévio de muitos funcionários públicos, os processos-crime instaurados contra dirigentes do PAICV, na sua maioria sem corpo de delito, chamo a atenção, para o célebre caso do dossier “África” que perigou, e quase criou um incidente diplomático grave com Angola, pondo em causa as boas relações que sempre existiram entre os nossos países.
Na altura, o Ministro de Estado da Justiça e Administração Publica Dr. Eurico Correia Monteiro teve de ir a correr a Luanda apresentar as desculpas oficiais ao Presidente Eduardo dos Santos, mas antes de abalar teve de se aconselhar com o ex-presidente Aristides Pereira…
Por falar da justiça, realço para os jovens juristas para se atentarem à qualidade da argumentação jurídica e doutrinária produzida pelos nossos Venerandos Juízes, em relação aos casos que julgaram, nomeadamente, os que tinham pendorzinho mais político e intimidatório.
Há um processo, muito engraçado, intentado pelo STJ ao, então, edil de Mosteiros Dr. Júlio Correia, por ter dito que o Supremo é Super…
A este propósito, e já que estão no Palácio da Justiça, para não ficarem só a ler documentos, processos, sentenças e acórdãos, contabilizem quantos processos-crime julgados e condenados, e instaurados pelo Governo do MpD contra o jornal “ASEMANA”, que por mais umazinha condenação, impunha a prisão efectiva do seu Director. Foram mais que dez, meus caros, e não deixem de reparar para os libelos acusatórios…
Mas se não se cansaram com tantas barbaridades, ops, digo, cabo verduras democráticas, podem compulsar o processo-crime contra os sindicalistas, que foram presos em pleno exercício da sua actividade sindical…
Está tudo registado, basta ir lê-los, porque são documentos públicos e oficiais.
Mas, voltando ao fio da meada, da minha história do Chibinho e do Ti Lobo, após 2000, o que foi realizado, o que foi resgatado em termos de imagem internacional, a normalização das finanças públicas, a elevação da auto-estima nacional, o respeito efectivo pela diferença, pelos direitos, liberdades e garantias dos crioulos, pela efectiva liberdade de expressão e de opinião (mesmo com os exageros escabrosos de certos jornais privados escritos e on-line…), pelo discurso e da prática diferentes de união, de ética, de solidariedade, de humildade, que se trouxe à cena e ao embate politico nacional, pelo partido que está no poder, quer-nos parecer que tudo isto revela uma inteligência e sabedoria excepcionais de governação e de visão, num país onde as necessidades são imensas, as ansiedades são constantes, as pressões económicas internacionais não são controláveis, a pobreza é ainda alta, o desemprego que flagela a população feminina e jovem teima em não descer, e outras adversidades que vamos vencendo e ultrapassando.
E, analisando o discurso do partido na oposição desde 2001, constato que este não evolui, não perdeu a arrogância de que é seu timbre, não perdeu os seus tiques de desinformação e de maldizer, que continua igual a si mesmo, sem ambiguidades, baseado numa percepção errada da inteligência dos cabo-verdianos.
Ou seja, o povo crioulo é e sempre foi maduro, responsável, que sabe decidir, sabe escolher, sabe avaliar, sabe analisar e quer ser respeitado como tal, e não precisa de nenhum tutor nem “papá” para mostrar o caminho que quer seguir, e para onde quer avançar. O partido politico que não tenha esta leitura está condenado à falência e ao descrédito.
Mas isto, infelizmente, não consta do objecto de percepção do partido da oposição, a quem este destila o discurso do maldizer, do ódio, de atestado de menoridade política, e de desinformação, pensando que ainda que se está naqueles tempos coloniais, onde só acessavam ao sistema de ensino e à informação os privilegiados, como por exemplo o Dr. Carlos Veiga, o Dr. Jorge Carlos Fonseca, entre outros. E o regresso a actividade político-partidária nacional, com o discurso de reentrée desde da sua eleição na Convenção última, e os que vai produzindo pelo país fora e pela diáspora, esmiuçando-os até ao tutano, revelam, a meu ver, que o Dr. Carlos Veiga, continua a emitir mensagens pobres, com ódio, sem ideias novas para os novos desafios de Cabo Verde, desinformativas, com imensas inverdades, e por aí vai.
Dá-me ideia que, sem o trabalho de casa feito devidamente, e sobre os joelhos, vai dando umas tiradas aqui e ali, com oratória dramática e empolgante, para ver se consegue meter no seu botinho alguém mais incauto ou distraído sobre a realidade do país e das realizações que estão sendo feitas, e que são de reconhecimento internacional.
Pois é, enquanto uns avançam com maturidade, inteligência, humildade, sabedoria e conhecimento, há outros que teimam em continuar a andar para trás para o passado, que qualquer dia chegam à era dos dinossauros jurássicos.
E tendo uma vantagem, à partida, que é a experiencia de vida, mesmo assim não faz o up-grade da actual realidade cabo-verdiana, e do seu povo, para poder mudar o seu discurso e sintonizar-se aos anseios dos crioulos, que há muito deram um cartão vermelho ao ódio, à mentira, à arrogância e à esperteza saloia.
A terminar deixo o seguinte repto: no quadro político-partidário cabo-verdiano quem é o Chibinho e quem é o Ti Lobo?
Eu cá continuarei fã do meu herói, o Chibinho.
Helena Fontes
Cidadã eleitora"
*Artigo publicada pela autora em 2010, no jornal A Semana.
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