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Os erros e gralhas nos manuais são sintomas... não o problema
Ponto de Vista

Os erros e gralhas nos manuais são sintomas... não o problema

A sociedade cabo-verdiana, inadvertidamente, delega completamente ao Estado a cara decisão de fazer o que entende nas escolas. Logo, alguns agentes do Estado, com poder de decisão, têm-se habituado a decidir sem escutar ninguém.

Tendo acompanhado com bastante atenção as discussões geradas na rede social facebook a respeito dos erros e gralhas em manuais escolares, sirvo-me da minha experiencia[2] no âmbito das últimas mudanças curriculares em Cabo Verde para afirmar que o sistema educativo tem outras prioridades e que estas gralhas e erros que têm sido apontados nos últimos anos, e na semana de 2 a 8 de Outubro de 2017, com mais acutilância, são um sintoma de um problema maior. Com efeito, a substituição dos manuais não é prioridade para o sistema educativo mas é a coisa mais aliciante de se fazer, embora bastante complexa. A escola cabo-verdiana tem sido palco de muitas mudanças e experimentos (educação em matéria da população e para a vida familiar, a constituição da educação para a cidadania em disciplina, educação para empreendedorismo, matérias que são parte de outras áreas disciplinares etc) enquanto questões essenciais ficam de lado (como a adequação da oferta educativa à situação linguística, por exemplo).

Foi com imensa alegria que acompanhei as discussões na rede social facebook, acontecimento que acabou contribuindo para a colocação da educação no centro dos debates durante uma semana. E na esperança de que, pelo conteúdo das postagens, a educação possa vir a ser prioridade desta legislatura, faço esta comunicação que, salvo o risco de alguma ingenuidade minha, pretende embarcar na deixa, justificando a necessidade de se priorizar  a educação nesta legislatura, sem propaganda e populismo que não levarão a parte alguma.

Antes, destacar as postagens de algumas pessoas de referência no cenário educacional cabo-verdiano que a minha rede de amizades no facebook pôde notificar: segui de perto as postagens de Augusta Évora Tavares Teixeira (professora de língua e escritora, com mais de 20 anos de experiência), Bartolomeu Varela (jurista e professor na área das ciências da educação e direito com experiencia no ramo há mais de 40 anos), Augusto Borges Amado (professor com experiencia na formação de professores e reformas educativas, com mais de 30 anos de experiencia dentro e fora de Cabo Verde), Pedro Alexandre Rocha (professor de língua portuguesa reformado, antigo deputado e autarca,) que atraíram e agregaram comentários de outros, acabando por encorajar em mim a ideia de que talvez a educação possa vir a ser prioridade do Governo, como de facto é necessário. Acolhi com especial apreço o artigo de Natacha Magalhães (jornalista e escritora da área infanto-juvenil, com obras de interesse educacional) com o artigo Do “Kumi, bebi, so ma dja manxi” aos manuais da vergonha. Vi as sucessivas reacções da senhora Diretora Nacional e da senhora Ministra da Educação na TCV, nos jornais da noite de  02 Out 2017; 3 de out de 2017; as reacções de outros segmentos da sociedade em  5 de out de 2017; e no dia  6 de out de 2017, a decisão do Governo em retirar os manuais de circulação; Inúmeros outros mais terão surgido mas o conteúdo destes é suficiente para abranger a magnitude do problema: da parte das pessoas que postaram comentários sobressai a veemente reprovação dos erros nos manuais…da parte das autoridades implicadas, a senhora Ministra e a senhora Diretora Nacional da educação, uma progressão interessante nos discursos que, felizmente, não se mantiveram rígidos ao longo da semana.

Na minha opinião, os erros nos manuais são só o sintomas de um outro problema maior: A sociedade cabo-verdiana, inadvertidamente, delega completamente ao Estado a cara decisão de fazer o que entende nas escolas. Logo, alguns agentes do Estado, com poder de decisão, têm-se habituado a decidir sem escutar as recomendações técnicas. Por isso a recorrência dos erros em manuais escolares desde que se começou a produzi-los em Cabo Verde.

Mas ao lado disso, outras decisões têm sido tomadas ao sabor da conveniência dos responsáveis políticos, atropelando as reais necessidades do sistema educativo. Daí serem bem-vindas as reacções fortes havidas da parte das pessoas que referi. Sublinho que, as melhores coisas que acontecem ao sistema educativo cabo-verdiano acabam sendo assombradas por episódios de má memória. Exemplos recentes, justamente a tal APC[3] e outro, este maravilhoso manual de matemática que, por imprudência de alguém, acabou tendo esses erros.

1. O contexto APC onde surge a produção dos manuais nos últimos 7 anos em Cabo Verde.

Da postagem de Bartolomeu Varela retive uma reacção de um colega meu, que é profissional e  estudioso da educação em Cabo Verde. Elimino, propositadamente, algumas partes do seu texto para podermos focar no essencial. Numa reação à postagem do professor Varela,

Pedro Clóvis Fernandes diz : Há uma certa tendência (…) de muitos caboverdianos em ver as coisas só pelo lado negativo. Não se está a valorizar todo o esforço feito pelo Ministério da Educação na implementação de uma nova abordagem do processo de ensino e aprendizagem. Num tempo impressionante conseguiu-se fazer algo extraordinário. Na reforma anterior levou-se mais de uma década para se introduzir uma nova abordagem de ensino (…). Gastaram-se milhares de contos para dar em nada. (…)

A produção de manuais não é, necessariamente, uma reforma. Mas foi iniciada uma reforma em 2006, chamada inicialmente revisão, com um documento orientador fundamentado em estudos de quase uma década. Com efeito, foi no âmbito da reforma educativa com base em estudos realizados desde 1999, a que se denominou, inicialmente, revisão curricular, que se começou a produzir manuais novos. Antes disso o sistema educativo teve manuais novos no âmbito da chamada reforma educativa dos anos 90 do séc. XX, há mais de 20 anos.

A reforma de 2006 não tinha como propósito último a produção de manuais. A reforma, depois de analisar os diagnósticos[4] e propostas de organização e desenvolvimento curricular para o tempo presente, decidiu pela introdução do ensino por resolução de problemas. Aliás, para produzir manuais não há obrigatoriedade em realizar uma reforma. Mas a actualização dos manuais foi uma necessidade sentida, pois, já em 2009 se começou a experimentar os primeiros programas no 1º e 7º anos de escolaridade, numa grelha curricular renovada, com a fusão de algumas disciplinas (história e geografia) e introdução de outras (educação para a cidadania). A principal diferença desses programas estava nas metas: sem tantos objectivos específicos, as suas metas eram uma frases indicando claramente a utilidade social dos conhecimentos veiculados (espécie de objectivo geral “avaliável” por situações-problemas complexas).

Nos fundamentos dessa reforma, que remetem para vários problemas detetados no sistema educativo desde 1999, justifica-se a necessidade de se introduzir uma nova abordagem na educação que seria a utilização de situações complexas na aprendizagem e avaliação. Se convencionou chamar de Abordagem curricular por competências! A expressão competência atrapalhou bastante as discussões e representações que foram sendo geradas na sociedade cabo-verdiana, ocultando que, de entre outras implicações, APC aporta, como proposta pedagógica, a aprendizagem pela resolução de problemas, o mais actual dos paradigmas de ensino-aprendizagem. Esta abordagem sugere, que mais do que ter conhecimentos, há que puder mobilizá-los para a tomada de decisões e resolução de problemas, ainda em contexto escolar, contrariamente ao dito ensino por objetivos que preconiza, sobretudo, a aquisição de saberes, pois a sua mobilização para a tomada de decisões e resolução de problemas não é preocupação da escola, já que se espera que aconteça, naturalmente, depois da vida escolar. Pretendendo reverter este quadro de pessoas escolarizadas e com boas classificações mas fracas na tomada de decisões e resolução de problemas, seriam, portanto elaborados cadernos de situações-modelo que depois seriam inspiração para os professores, nas escolas, elaborarem situações para as suas próprias turmas.

Várias alterações são propostas: já planificação, por exemplo, se reserva um tempo para a aquisição de conhecimentos mas, também, épocas de resolução de problemas (semanas e épocas de integração) onde os alunos, em grupo, aos pares e, depois, individualmente resolvem situações complexas, com autonomia, para efeitos de diagnóstico, treino ou reforço dos conhecimentos, capacidades e habilidades (situações de diagnóstico, situações didáticas); mas também situações de certificação, pois há a ideia de se fazer a certificação dos alunos não só por provas de restituição de saberes mas provas de resolução de problemas. Quer dizer que os professores têm de ter muitas situações complexas na bagagem, com mesmo grau de complexidade (famílias de situações) e passar muito tempo sem dar a matéria porque os alunos precisam de mais tempo para trabalhar na resolução dos mesmos, tomando decisões, identificando os seus erros e revendo as matérias, fazendo consultas... Desta forma acontece a tal aprendizagem por resolução de problemas.

Um dos aspectos fundamentais para a efectivação desse intuito é que o aluno tenha acesso às matérias e os manuais serem disponibilizados, sublinhe-se, com muitos conteúdos. Até porque o professor não pode passar a vida escrevendo os apontamentos no quadro porque os alunos não vão se livrar nunca da centralidade do mestre e perderão muito tempo copiando as matérias para o caderno. Logo, os manuais são necessários.

Penso que, influenciados que somos por aquilo que sempre fomos, a nossa mentalidade voltada para uma sociedade “diplomista” enformando uma escola certificadora, ninguém se preocupa se estamos ou não a proporcionar experiências enriquecedoras aos alunos mas sim, se eles passam ou não nos exames, não importando a tarefa que são capazes de realizar. Assim, todos se preocuparam em entender os critérios de avaliação, quando, antes de decidir se o aluno tem o domínio mínima parcial ou máximo de qualquer critério de avaliação, havia que perguntar como foi a sua experiência em resolver problemas e tomar decisões em situações complexas, que aprendizagens adquiriu e que atitudes desenvolveu. Ou seja, mais do que certificar seja o que for, o aluno precisa ter as tais experiências complexas (situações de treino e situações didáticas), numa lógica de ensino com relevância da avaliação formativa em detrimento da sumativa pois, a verdadeira aprendizagem é experiencial e não aquela atestada por um certificado resultante de provas de papel e lápis, respondendo a perguntas com recurso unicamente à memória, sem o mínimo exercício de raciocínio.

Mas, voltando aos manuais, já em 2010, decidiu-se, portanto, abrir um parentese para actualização e adequação dos manuais, como mais uma etapa deste processo que, como disse, era de melhorar as práticas de ensino[5]. E foi nesse contexto que eu descrevi, que se começou a produzir manuais. Dois anos depois, foram generalizados sem serem devidamente revistos mas, sobretudo, num paradigma curricular, cujas discussões estavam desfocadas ainda, por falta de conveniente formação de professores e demais agentes. A única maneira de se conseguir isso seria através de formação à distância, prolongada no tempo porque havia conceitos cuja assimilação tomava tempo e não se podia, portanto, continuar com as capacitações pontuais presenciais de curta duração. A piorar, com efeito, veio a decisão da generalização da reforma nesse mesmo ano (2012) que tiraria as discussões do contexto das escolas experimentais[6] e seriam alargadas para todas as escolas do país. Assim, só com formação à distância[7] se poderia continuar o processo de mudança…  

1.1 Uma experiência bastante emancipadora: começou-se com adaptação, seguida de criação no país e edição fora e, finalmente, produção total em Cabo Verde:

Os primeiros manuais foram feitos através da adaptação de manuais portugueses em 2010/2011. Foram autores portugueses que os produziram e depois foram adaptados/customizados por autores cabo-verdianos. Foram os manuais de matemática e ciências integradas do 1º ano, matemática 7º e 8º anos, ciências da terra e da vida 7º e 8º anos, física e química 7º e 8º anos (editora leya).

O segundo grupo foi elaboração de raiz (o caso da língua portuguesa no 1º e 2º anos, ciências integradas do 2º ano, língua portuguesa do 7º e 8º ano, história e geografia de Cabo Verde) totalmente por autores caboverdianos ligados ainda ao processo de elaboração e experimentação dos programas. Essa fase foi com a Porto editora. Seriam os manuais voltados realmente para a aprendizagem por resolução de problemas. Alguns foram considerados pesados e com excesso de conteúdos por professores mas os alunos e pais gostaram deles. Do ponto de vista epistemológico-didático não são pesados. No caso do manual de iniciação à leitura do primeiro ano, muitos dos aspectos considerados pesados pelos professores fazem parte do programa de desenvolvimento da linguagem do pré-escolar. Portanto, a melhoria do ensino pré-escolar bem como maior articulação entre esses dois níveis era suficiente para acalmar os ânimos e orientar o processo.


Esta fase foi de uma grande aventura porque foi o início de uma trabalho que exigiu coragem mas de  muita luta e muita aprendizagem.

O terceiro grupo de manuais foi produzido de raiz, também, por autores cabo-verdianos, por concurso público e envolveu alguns autores que não estavam por dentro das principais discussões da experimentação. Foram as empresas cabo-verdianas a entrar em peso (100%) no processo editorial de manuais, um negócio volumoso para os empreendedores deste ramo em cabo Verde. A única queixa que detectei nos alunos era que os mesmos têm cheiro forte. Um aluno chegou a dizer-me que fica com dores de cabeça. No entanto, da parte da sociedade, houve reacção com relação aos erros e gralhas. Mas está claro que resultaram do processo escolhido que foi imprimir para generalizar e escolas experimentais deixaram de existir.

Do ponto de vista didáctico, havia que contemplar indicações para a sua melhoria tendo em conta a experimentação havida até 2012 mas todo o processo foi muito fechado, a partir de 2012/2013 em que houve, também, mudança dos directores e coordenadores do processo ao nível central, inclusive com a mudança da orgânica do Ministério da Educação.

Faltam manuais na parte final do sistema educativo, nos anos 9º, 10º, 11º e 12º.

2. Outros dossiers paralelos.

Ao lado da generalização da reforma no 1º e 7º anos de escolaridade, é desengavetada a experiência de ensino bilingue de autoria da doutoranda Ana Josefa Cardoso, em relação ao qual sempre fomos a favor desde a sua implementação em Portugal, e que estava há anos à espera do aval positivo das autoridades cabo-verdianas. Nessa altura decorria reintrodução a pluridocência no 5º e 6º ano de escolaridade, em experimentação há anos (antes de 2010), assunto que levou tempo para ser considerado pertinente por parte das autoridades[9], pois, a monodocência de 6 anos estava a dar cabo de tudo. Enfim, um conjunto de aspectos que iniciados antes de 2010, deveriam, entretanto, ser harmonizados à luz da nova Lei de Bases de 2010. Muitos deles exigiam investimentos que o Governo não fazia.

2.1 Ensino bilingue

O ensino bilingue (na modalidade experimentada ultimamente em Cabo Verde) é dos modelos curriculares para a gestão das línguas, o mais adequado à nossa realidade. Aliás, a próprio estudo no qual se baseou para se formular a reforma em 2006 dava conta que um dos graves problemas do sistema educativo é a sua inadequação à situação linguística dos alunos. O modelo de educação bilingue (que na verdade conta com várias modalidades) é a solução curricular para a política educacional em matéria de cultura e línguas, dando corpo ao preceito constitucional que manda o Estado criar condições para o desenvolvimento da língua materna em paridade com o português. Esse preceito constitucional conta com a assinatura da convenção internacional para os direitos económicos e sociais e uma série de outros normativos, designadamente a Resolução nº 48/2005, que obriga as instituições de ensino e Ministérios a desencadearem acções visando o desenvolvimento da língua cabo-verdiana. Portanto, é uma ilegalidade não ter projetos de desenvolvimento e experimentação do ensino bilingue.  Aliás, Cabo Verde fica feio na fotografia, perante os comités internacionais de Direitos humanos que esperam receber os relatórios regulares sobre o ponto de situação do cumprimento dos direitos humanos no país.

Os manuais do primeiro e segundo anos elaborados em 2011/2012 têm muitos textos dando visibilidade à língua cabo-verdiana como ponto de partida. Os textos estão desaparecendo nos manuais que agora aparecem em 2017, apesar de estarem a ser chamados manuais que se enquadram numa metodologia de ensino do português como língua segunda.

2.2 A assunção do ensino pré-escolar

A experimentação demonstrou que a pouca valorização do ensino pré-escolar tem consequências graves porque os professores do EBI têm baixas expectativas em relação ao alcance cognitivo das crianças. Tanto é que matérias que são do ensino pré-escolar e que constam da parte inicial dos manuais do EBI (tendo em conta atrasos diversos e crianças com necessidades especiais) foram considerados pesados para os alunos de 6 anos.

Mas a questão do pré-escolar passa por um problema de contratação dos profissionais licenciados. As Câmaras Municipais, principal entidade detentora dos jardins dos estabelecimentos de educação pré-escolar têm dificuldades em contratar esse pessoal. E os que já são profissionais há muito tempo e que adquirem as melhores habilitações são transferidas para o EBI. Sem a resolução desse detalhe contratual, não existe reforma curricular do pré-escolar que avance pois, é como já dissemos, na pequena infância é a qualificação do pessoal que é relevante…não os programas e guias.

2.3 A introdução do inglês e francês no 5ºano de escolaridade e mandarim no ensino secundário

Uma medida de aplaudir é a reposição do inglês e francês no 5º e 6º anos de escolaridades. Defendi isso há 5 anos na televisão, no programa conversa em dia e todos não concordaram. Na verdade, é uma reposição porque tinha sido uma conquista da sociedade cabo-verdiana e que foi eliminada nos anos 90 do seculo 20, em nome do alargamento do acesso. A sociedade precisa conseguir colocar isso, o quanto antes, nos anos mais baixos do sistema educativo, como, aliás, está na Lei de Bases.

2.3.1 A introdução do Mandarim

Como eu disse, não se investe no ensino por resolução de problemas. Isso cansa. Cansa os professores, cansa o aluno, cansa todo o mundo. E se continuarmos com um sistema educativo do tipo que pauta pela lei do menor esforço… menor esforço relacional, menor esforço intelectual, será aqui que vamos perder para os outros.

Se o empresário chinês aceitar não trazer o jovem da china que trabalha mais, vem de uma sociedade mais complexa, com uma língua materna de escrita mais complexa e mais desenvolvida que a nossa, se ele abrir mão desse jovem que aprende as nossas línguas (português e crioulo) mais facilmente que os nossos aprendem o mandarim (ao 9º ano de escolaridade não esperemos alta proficiência linguística em mandarim, salvo aluno com aptidão extremamente alta para aprender línguas)... Se o empresário chinês nos fizer esse favor e contratar o nosso jovem lá nos hotéis e casinos do ilhéu de Santa Maria, já valeu a pena termos investido no mandarim. Mas não é para o eliminar da grelha porque o nosso sistema educativo é pobre em línguas e elas não podem ficar por aqui. O wolof e o mandiga precisam entrar o quanto antes.

3. O contexto herdado em termos de regime de avaliação das aprendizagens

Em Dezembro de 2015, já no final do mandato, o Ministério da Educação publicou um novo normativo de avaliação, sem ter cuidado dessa formação continua e alargada de professores. Ou seja, passou-se muito tempo focado da emissão de novos manuais sem mudança nas práticas pedagógicas. Essa lei de avaliação exige que os professores apliquem provas de situações complexas (provas de integração)…uma batata quente para o Governo seguinte.

Alguns exemplos de situações complexas que podem ser transformadas em provas de integração:

Colocar os alunos a simularem a apresentação de um evento completamente em língua portuguesa (que não é língua materna aqui); um comentário crítico sobre atitudes como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pode ser aplicado aos alunos numa perspectiva interdisciplinar, mobilizando seus conhecimentos da língua, direito e cidadania ou mesmo filosofia. Questões como a mudança de sexo, o bullying, problemas ligados à denúncia de crimes contra menores, o barulho, assédio sexual, relações professor aluno, etc. essas seriam situações de papel e lápis. Por outro lado, situações de vida prática, envolvendo o uso da língua, por exemplo, um vídeo de um jogo para ser relatado por alunos na língua não materna (português ou mesmo em língua estrangeira, o francês, para níveis mais avançados), uma cena de violência em campo para ser debatida e criticada, uma reportagem sobre um evento, um discurso para uma cerimónia qualquer, enfim, situações onde o aluno é de facto confrontado com a complexidade do real onde o a ele deve ser competente para poder agir, com assertividade e coerência.

Tais situações, entretanto, não seriam avaliadas apenas pelo critério do uso correto das ferramentas da disciplina (fundamentar as decisões com base em uma corrente doutrinária de filosofia, citar um artigo da lei, usar correctamente a gramática e a pronúncia em línguas, etc). As situações devem ser avaliadas, também, por critérios socioculturais como a coerência a pertinência dos gestos e decisões tomados na hora da encrenca. Digamos, submeter os alunos a acções de raciocínio em contextos de complexidade, decidindo inda que na incerteza e urgência mas não fugindo da responsabilidade. Os professores precisam ser muito bem formados para poderem ver isso porque não estão habituados. Por outro lado isso exige o trabalho cooperativo na escola, a partilha de ideias e partilha de subjectividades no processo de avaliação que sempre foi problemática e um reduto de poder que o professor não quer partilhar. As coordenações têm que funcionar e, sobretudo, os professores devem conhecer muito bem a realidade dos seus alunos. Eis as principais dificuldades que a comunidade educativa (formadores e professores) enfrentaram no âmbito da tal APC e muitos que estiveram envolvidos nisso nem sabem. Analisei dezenas de situações complexas elaboradas por diferentes atores e muitas foram aplicadas. O problema tinha a ver com esses aspectos que me referi. Inadequadas à idade do aluno, inadequadas ao programa, inadequadas a algum aspecto da nossa realidade.

Epílogo: para ensinar melhor e gerar boas situações-problemas para os alunos que lhes proporcionem experiências significativas de aprendizagem devemos conhecer melhor a nossa realidade, ter capacidade de liderança e capacidade de fazer trabalho cooperativo. Muitas das situações devem ser trabalhadas por grupos de professores e validades em várias instâncias. Menos burocracia, mais sentido prático, mais criatividade. Os professores devem estar informados sobre as dinâmicas sociais e não ter medo de as enfrentar.

Muitos desafios não alcançados (sequer tratados) e, entretanto registamos fugas. A Primeira fuga: produção rápida e generalização de manuais; a segunda fuga, aprovação de uma lei que é omissa em muitos aspectos e que obriga os professores a fazer uma coisa para a qual não se encontram minimamente preparados porque não foram esclarecidos de que a situação de diagnóstico e a situação de treino eram mais importantes que a situação de certificação porque para que o aluno se torne competente, primeiro tem de ter consciência das suas dificuldades, depois experimentando mobilizar aquilo que sabe para que possa elaborar novas hipóteses e novos questionamentos. Não conseguindo fazer a prova complexa certificativa ele deve ter, no seu processo individual, a indicação das situações- problemas experiencias complexas nas quais participou (visitas de estudo, acampamento, eventos desportivos e problemas enfrentados) e isso devia ser encarado como uma mais-valia curricular para ele…mas exige organização dos processos individuais de seguimento e instrumentos de avaliação mais complexos como por exemplo, o portfolio do aluno. A tal lei de avaliação não é clara nas orientações sobre como organizar as experiências complexas de aprendizagens em termos diagnóstico e treino nem como ficariam os alunos que não conseguem desempenho satisfatório nas situações complexas (por falta de maturação) mas conseguem notas razoáveis em termos de provas de conhecimentos, como ficariam na progressão vertical. Assim com não clarifica a transição dos alunos do 1º ano que não tendo alcançados os objectivos, qual seria a sua situação curricular no segundo ano. Uma alternativa seria dar indicações de que do ponto de vista estatístico esses alunos continuam matriculados como alunos do 1º ano de escolaridade mas acompanhando os colegas em regime de turma composta por razões de socialização…e por isso trabalhariam em manuais do primeiro ano, no ano seguinte, outra vez, até alcançarem as metas mínimas de aprendizagem desse nível.   

Ao lado desses problemas fundamentais, aplica-se a lei às pressas, acaba-se fazendo a aplicação de provas de integração muito mal elaboradas e imediatamente no âmbito da avaliação sumativa e temos, então, falsas situações-problemas aplicadas como se fossem tal, mas não acrescentando valor algum aos alunos… e provocando muito stresse aos professores e coordenadores. Provas elaboradas por professores que não aplicaram metodologias ativas, sem formação em metodologias ativas, a alunos que não tiveram a oportunidade de diagnóstico e treino em situações complexas…

Entra o novo Governo e no meio de tantas queixas, muda os programas que exigiam essas provas. Muda os manuais, na decorrência da mudança dos programas. Tudo num tempo record, facto que até foi elogiado[10].

Esquece-se completamente dos alunos da fase terminal do ensino secundário que, esses sim precisam de manuais porque têm muito maior autonomia no uso desse material, têm muita matéria para aprender antes de resolver situações-problemas e nunca houve reforma educativa que conseguisse chegar a esse nível de ensino como deve ser. Enfim, a fraca qualidade da educação quando medida em alunos que terminam o ensino secundário, as razões imediatas estão sobretudo nos últimos anos de ensino secundário que eles frequentaram

Conclusão

Devemos nos perguntar se o sistema educativo cabo-verdiano não vem padecendo do excesso de poder dos agentes do Estado. Excessivo poder do Governo anterior por tempo excessivo no poder, excessivo poder deste Governo, por excessivo tempo fora do poder, que acabam trazendo medidas rápidas sim, mas com 15 anos de atraso. É que algumas dessas iniciativas de 2017 remetem para os anos 90 quando apareceram os manuais que reinaram até 2010 mas que, logo em 1994 causaram decepção nos professores por serem, na altura, considerados mais pobres que os anteriores que nos chegaram dos anos 80. Do mesmo modo, referir-se à lei de 1993 que mandava ensinar o português como língua segunda e pular sobre tudo o que se fez nesse sentido até hoje, não é aceitável.

Hoje, a prioridade curricular do sistema educativo não podia ser a mudança dos manuais mudados e sim a sua elaboração para os anos terminais de escolarização, a partir do 9º ano, onde não existem manuais. Neste particular sublinhava a necessidade de uma troca de experiência com os peritos suecos que elaboraram aquele manual riquíssimo, no sentido de ajudarem os cabo-verdianos a terem manuais de matemática com situações-problemas locais, destinados aos alunos do 9º, 10º, 11º; 12º;

A questão dos manuais tem sido um modo de chegar às famílias dizendo, vejam: estamos a produzir algo para vocês. Estejam tranquilos… Os erros nos manuais são um sintoma de um misto de pressão e oportunismo que os dirigentes educativos vivem que às pressas produzem e generalizam manuais. Por um lado, atender às demandas sociais para uma melhor qualidade educacional…Por outro, a escolha de uma maneira de investir materialmente na educação em algo que é extremamente aliciante: os manuais. Estes chegam ao interior das famílias, às mãos das crianças, por um lado mas negócio por outro lado. No entanto, em mãos de professores com dificuldades, valem pouco, sobretudo em níveis de escolaridade mais baixos. É basta lembrar às pessoas que estudaram na escola primária há 50 anos, até hoje não se esqueceram quem foram as suas professoras e professores…mas não se lembram do manual…Porque provavelmente foi um manual emprestado e não tinham. Mas o manual tem inúmeras vantagens, sobretudo no ensino secundário, hoje, em Cabo Verde, os alunos não têm tempo para resolver problemas, lêem textos e não entendem porque não estudam nos livros.

Melhor qualidade educativa não se consegue com investimentos materiais no sistema e sim com boas situações de aprendizagem para os alunos. Isso se consegue com professores que estudam e que conhecem bem a realidade dos seus alunos. Para isso precisam de boas ofertas de aperfeiçoamento metodológico;

A retoma das experiências de ensino bilingue bem como financiamento de acções de produção de materiais didácticos, em parceria com o Ministério da cultura, para o ensino da língua cabo-verdiana bem como a formação de professores nessa linha pedagógica. Este é um imperativo constitucional, humanístico. E uma questão de respeito pela nação e o político que não concorda com isso incorre no vício de traição à pátria;

A decisão sobre quem deve contratar profissionais licenciados para o ensino pré-escolar;

A articulação entre o ensino pré-escolar e básico, colocando os jardins-de-infância sob a tutela dos gestores de polo (para isso a actualização daquela lei de administração e gestão de estabelecimentos de ensino precisa ser atualizada);

Melhoria da Lei de avaliação sem eliminar o ensino por resolução de problemas porque foram os próprios alunos que pediram isso durante as experimentações dizendo que sentem que são capazes de resolver problemas que outros colegas não resolvem, apesar destes terem boas notas em provas de conhecimento;

Nesta perspectiva, o empoderamento do IUE, capitalizando toda a sua experiência no âmbito da educação é fundamental.

[1] Doutorando em educação, mestre em didática das línguas cultura e literatura, mestre em linguística (especial. Crioulística e língua caboverdiana), Lic. em Ciências da educação.

[2] Fiz o seguimento do processo de experimentação dos programas, propus melhorias em muitos dos programas experimentais, Participei como formador de professores experimentadores ; experimentador de programas e manuais nos anos 2010; 2011; 2012; criei alguns manuais e orientei acções de capacitação (curtas) para professores do ensino básico e secundário na avaliação nos anos 2013; 2014; 2015 e 2016.

[3] Pude testemunhar vários problemas que foram enfrentados mas nenhum tinha a ver com a inconsistência técnica ou viabilidade do paradigma APC em si mas dificuldades de liderança e relacionamento entre as estruturas centrais, formadores e professores. Pude identificar, também, dificuldades de vários agentes em traduzir princípios gerais abstratos em realidades concretas…dificuldade em articular teoria e pratica, talvez, por falta de experiencias com a realidade local. Me pareceu que somos um tanto alienados e temos uma representação errada da nossa realidade.

[4] Consulte-se o chamado Documento Orientador da Revisão Curricular (DORC). Está on line.em https://pt.scribd.com/document/289043122/DORC-Documento-Orientador-Da-Revisao-Curricular-Rev28-08-06-2

[5] No caso da língua portuguesa do primeiro ano, o manual do primeiro ano, além de ser pobre em conteúdos e cores, foi elaborado com o método analítico sintético que exige muita centralidade do professor e poucas tarefas para os alunos. Já o programa em experimentação ia noutra direcção, sugerindo distribuição de letras moveis e outros materiais para os alunos aprenderem a ler pela resolução de problemas, preenchendo palavras com lacunas, jogando palavras cruzadas e raciocinando e testando as suas hipóteses sobre as regras leitura e escrita. Neste sentido se pode afirmar que esta produção de manual foi uma necessidade extrema em cortar com uma prática que estava levando os alunos a ler só em meados do segundo ano de escolaridade.

[6] As escolas de experimentação eram: em santiago, escola básica da Várzea, escola polo II em Assomada (Ex EBC), Ribeira da Barca, Veneza em calheta, escola secundária de são domingos. em São Vicente, a escola Salesiana, escola Valentina silva e escola de São Pedro.

[7] Neste particular, acrescento uma impressão pessoal: se alguma autoridade achava que os técnicos de reforma estavam com demasiado poder, então a tática de alargar as discussões por todo o país funcionou como se fosse outra a estratégia, mas a de dividir para reinar.

[8] Sobre este particular, aproveito para pontuar que no início da escolarização, por mais que o manual seja importante, o professor é muitíssimo mais importante. Daí que penso ser uma opção de engodo preferi editar manuais novos e bonitos sem assegurar a formação continua e o seguimento de professores. Diferentemente do caso dos alunos no final do ensino secundário que vezes sem conta têm conflitos com os professores e terem mais autonomia no uso de manuais e precisarem muito mais deles.

[9] Veja-se o programa conversa em dia, no minuto 4 neste link http://www.rtc.cv/index.php?paginas=47&id_cod=21486&nome_programa=Conversa%20em%20Dia&data=2012-10-04&codigo=ced

[10] Uma medida dessas não tem mérito nenhum, apenas por ter sido rápida. Não estamos perante a necessidade de salvar pessoas de um naufrágio nem da erupção do vulcão do Fogo.

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