Cabo Verde é, na prática, um Estado de Direito?
Ponto de Vista

Cabo Verde é, na prática, um Estado de Direito?

Que Cabo Verde seja um Estado democrático, disso não há dúvida. Todavia, já o mesmo não se poderá dizer quando a questão é saber se Cabo Verde é um Estado de direito. Eis a razão!

No dia 02 de dezembro de 2017, cedo de manhã, fui contactado, na qualidade de Advogado, por um familiar de um cidadão bissau-guineense, que se encontrava retido, entenda-se, detido pela Polícia de Emigração e Fronteiras, no aeroporto Nelson Mandela, na Cidade da Praia, Cabo Verde.

Assim, dirigi-me ao aeroporto, no sentido de me conferenciar com o detido para, entre outras coisas, saber da razão da sua detenção e, eventualmente, ele me constituir mandatário.

Ora, chegado ao aeroporto, identifiquei-me perante o segurança presente, ao qual pedi que anunciasse a minha presença aos elementos da Polícia de Emigração e Fronteiras, informando-os que sou Advogado e que estava aí para tratar do assunto do cidadão guineense, o que fez com toda prontidão.

Cerca de 30 minutos depois, apareceu uma agente da Polícia Nacional a quem expliquei a razão da minha estada no aeroporto. Cerca de 15 minutos depois, reapareceu e me pediu para a acompanhar até a sua chefe.

Chagado aí, depois de me identificar, pedi informação sobre a razão pela qual o cidadão guineense se encontrava detido, ao que me respondeu que o mesmo não tinha meios de subsistência e o termo de responsabilidade que tinha na sua posse não fora previamente avalizado pelo serviço de Emigração e Fronteiras e nem sequer a assinatura estava reconhecida. Frente a isso, e num exercício de diplomacia forense, respondi-lhe que, em se tratando de um cidadão oriundo de um país da CEDEAO, (e disse mais: Guiné é irmão gémeo de Cabo Verde), que chega ao nosso país pela 1º vez, portanto sem antecedente criminal, havíamos de encontrar uma solução quanto  ao termo de responsabilidade e deixá-lo entrar livremente no território.

Até aí nada de anormal e num clima afável.

Posto isso, acto contínuo, disse à chefe, uma senhora de cor clara, 1ª subchefe da Polícia Nacional, cujo nome ignoro, que gostaria de me conferenciar com o detido, ao que ela me respondeu, perguntando se tinha procuração. Frente a essa pergunta, respondi-lhe que o encontro com o detido tinha exactamente como propósito ele assinar a tal procuração que ela estava a exigir-me.

Mas, em vão. Argumentou que, sem procuração, não poderia permitir-me conferenciar com o detido.

Perante manifesto contrassenso, insisti tentando demonstrar que, para ter procuração assinada, teria de chegar perto do detido.

Outra vez, em vão. A senhora chefe continuou na sua retranca e a tentar ensinar-me que o familiar que me havia contactado poderia muito bem assinar a tal procuração, ao que lhe respondi que isso não era legalmente possível, e que aquele familiar já havia feito o que podia, contactar Advogado, mas que quem deveria assinar a procuração era o próprio detido.

De novo, em vão. Toda a minha tentativa de trazer aquela senhora à razão revelou-se infrutífera.

Logo pensei para os meus botões e sem exteriorizar: essa senhora está a confundir procuração, substabelecimento e gestão de negócios.

Continuei insistindo, pedindo um espaço para redigir tal procuração, o que me foi recusado.

Perante tamanha insensibilidade e falta de sentido de servidor público, disse-lhe que a sua atitude seria objecto de um artigo de opinião para que todos ficassem a saber que, na prática, Cabo Verde não é um Estado de direito, isso muito por culpa de muitas chefias intermédias. Acrescento agora, nem todas, diga-se, em abono da verdade.

Ora, terá sido isso que desencadeou a fúria daquela senhora contra mim, dizendo que era livre de fazer tal artigo, tendo-se dirigido a mim pedindo-me que abandonasse a sua sala. Logo dei por mim a pensar que aquela senhora estava a pensar que estava em sua casa. Tudo isso na presença de dois subordinados seus, agentes de 2ª classe (uma senhora e um senhor), que se mantiveram calados e perplexos, a quem pedi que me servissem de testemunha sobre a atitude da “chefe”. Mas, ao que pude perceber, se calhar, não deveria contar com eles, pois, não estavam dispostos a entrar em conflito com a mesma.

Porém, não desisti. Já no hall do aeroporto, e depois de ter redigido a tal procuração, pedi novamente à Srª agente de 2ª Classe que fosse disso informar a sua chefe, o que, com alguma relutância, acabou por fazer. De regresso, informou-me que a chefe não iria voltar a receber-me e que fosse tratar do assunto directamente na Direcção de Emigração e Fronteiras que, como bem sabia, por ser um sábado, encontrava-se encerrada, colocando-me na impossibilidade de, enquanto colaborador da justiça, fazer o meu trabalho.

Mas, ainda que o Serviço de Emigração e Fronteiras estivesse aberto, com que legitimidade e de que me serviria lá ir sem procuração, portanto, sem estar mandatado pelo detido?

E na 2ª Feira, 04 de Dezembro, soube que o detido em questão fora expulso domingo à noite.

Ora, da mesma forma que não defendo a entrada de estrangeiros no País sem regras e sem meios de subsistência, também defendo que, chegados a Cabo Verde, e em caso de detenção, lhes seja garantida a possibilidade de contactarem Advogado como mandam a Constituição e as demais leis da República, sob pena de se estar a prestar, no mínimo, um mau serviço à nossa diplomacia africana.

É que, o direito de qualquer detido contactar directamente ou por intermédio de familiares um advogado da sua confiança, é tão importante que teve dignidade constitucional.

Assim, ao não permitir-me, por mera birra, contactar com o cidadão detido (qualquer que seja a sua nacionalidade), a “chefe” violou de forma grosseira e propositada os artigos 30º, nº4 da Constituição da República de Cabo Verde e 7º do Código de Processo Penal, nos termos dos quais “ Toda a pessoa detida ou presa deve ser imediatamente informada, de forma clara e compreensível, das razoes da sua detenção ou prisão dos seus direitos constitucionais e legais, e autorizada a contactar advogado, directamente ou por intermédio da sua família ou de pessoa da sua confiança”.

Ora, não será seguramente desta forma e com atitudes desta natureza que Cabo Verde irá afirmar-se na CEDEAO que pretende evoluir de uma comunidade de Estados para uma comunidade dos Povos, em que os direitos dos cidadãos da comunidade serão escrupulosamente respeitados, como sonharam seus pais fundadores.

Tenho por mim que, nos serviços de fronteiras, onde se cruzam pessoas de diferentes nacionalidades, culturas e sensibilidades, deviam ser colocadas pessoas com alguma sensibilidade quanto ao respeito pela Constituição e demais leis da República, e sei que actualmente no seio da corporação policial há muitas pessoas licenciadas em Direito, o que à partida, dão garantia de um tratamento mais consentâneo com o que deve ser um Estado de direito, onde a Constituição e as demais leis da República são para serem respeitadas por todos.

E, sem querer tomar a árvore por floresta, onde pára o Estado de direito em Cabo Verde?

José Carlos Furtado 

*Advogado

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