DEVAGAR MANENTI[i]
Elas

DEVAGAR MANENTI[i]

 A única opção que temos, neste Ano Cansado de 2017

- Estória, estória.

- Fortuna do Céu, Amém!

- Era o sexto dia.

O Senhor Deus, em sua sabedoria e onipotência, fez o Céu e a Terra, o Sol e a Lua, o Mar bravo e o Mar manso, as nuvens, os astros e as estrelas. O dia e a noite. E Deus viu que era bom. E Deus olhou para as suas mãos. E as mãos de Nossenhor estavam cheias de barro. Era o sexto dia.

Fez-se um grande silêncio.

E Deus sacudiu as mãos. Eis que dez respingos de barro caíram no meio do mar: à direita, o Barlavento, à esquerda o Sotavento.

Obra do acaso.

Quem souber mais, que conte melhor!

E que o mais novo corra rápido e tente agarrar o saco de dinheiro que está quase entrando no mar.[ii]

Pudesse a língua do povo fazer um konbersu sábi[iii] com a língua dos livros, pediria a bênção aos mais velhos. Ensinava a língua do Pai a falar a língua da Mãe. E eis que nasceriam mestiços do amor que saberiam a língua dos homens. Na Gramática da paz, com sintaxes de luz, em tempos de todos.

Todos os tempos e modos. Todas as formas do mundo. Formas de verbos, regulares e desregulados. Que a morfologia da morabeza é amiga da Lua. E a identidade verdiana é a gramática do Sol.

 Durante séculos se fez a sementeira em pó. Muitos nem pensavam um ano dazágua[iv]. Hoje eu assisto ao assar da espiga, enquanto se formam bonecas de milho.

No quintal o pilão com as moças cochindo[v], no fogão de pedra se  faz a janta.

Grão por grão, a cachupa é cozida. Em cada dia de jornada. Nas três pedras da Mãe Velha.

Temos no nome a herança morgada, no ventre as cores da África e no coração a imensidão do mar. E enquanto o covador crioulo abrir, todos os dias, nas achadas, cutelos e pedregais[vi] da vida, suas covas grandes de esperança, então o seguiremos, semeadora de sonhos. Com quatro grãos de milho, e, na outra mão, misturados ao feijão e roca, uma centelha de esperança. Que se faz Certeza.

Porque a chuva tarda, mas vem. Sempre vem.

E o milho nasce.

E as crianças gargalhofam do destino torto.

Não nos perguntem quantas mondas haverá. Quantas ramondas se farão.

Nem se o corvo roubará nossas sementes.

Não nos perguntem das segundas sementeiras. Nem do macaco daninho da calada da noite. Porque o mais certo é que haja mondas e ramondas. Só que as ervas daninhas serão pasto. Na boca da cabra flagelada. E eis que chega o dia do sim.

E aí (as) sim, a corta se fará.

 

Ilha a ilha

Dor a dor

Amor a amor [vii]

[i] Devagar manenti é uma expressão usada no interior de Santiago, em momentos de quase desânimo, quando tudo parece se tornar difícil de alcançar. Para quem já esteve num campo de massapé, com a chuva sem dar a cara, num sol tórrido de meio-dia, antes do almoço…mesmo assim com gafanhotos à espreita e o mar longe… ou algo tão desanimador quanto isso, sabe que, só por amor e respeito aos mais velhos, valeria continuar a trabalhar. É aí que eles surgem, quase sempre uma velha (avó, tia…) a dizer “DEVAGAR MANENTI”, nunca vi frase mais poderosa.

[ii] “Estória” contada na maioria das ilhas de Cabo Verde. Esta versão de Pedro Kanela foi traduzida livremente para o Português. As sequências em negrito constituem a estrutura que distingue pequenos contos (“estória”) de piadas (“partes”). No interior de Santiago coexistem as duas versões, sendo que, quando se trata de um “partes” a linguagem é mais leve e corrida.

[iii] Tradução literal: conversa gostosa. Konbersu (conversa), sabi (gostoso, vem de sabor/”isso sabe bem” etc. em português. Em língua cabo-verdiana (LCV), usa-se o adjetivo “sábi” e o substantivo “sabura”

Diz-se de um diálogo em que há competição oral de dizeres cuja performance dos interlocutores é avaliada pela rapidez, sabedoria, criatividade e humor nas respostas. É uma espécie de “vale-tudo” da fala, em que cada réplica é um desafio de resposta acompanhada dos ditados e provérbios, entre outras cores da linguagem, permeados pelo ritmo, a cadência, que, após o mote, marca a fala do interlocutor. O objetivo principal dos competidores é surpreender e agradar a audiência.

[iv] Época dazágua, (das-águas se fosse em Português), período que decorre de julho a setembro, desde a sementeira em pó, ainda antes de a chuva cair, até a corta (colheita dos produtos agrícolas em propriedades de sequeiro). Ano dazágua é sinónimo de ano bom, de muita chuva e fartura. Após a sementeira em pó e dependendo do tempo que a separar das primeiras chuvas, o destino das sementes é incerto: tanto podem ser comidas por animais como podem se deteriorar, se a chuva for insuficiente para fazer crescer o milho. Pode haver necessidade de uma segunda sementeira. A sementeira se faz por dois grupos de trabalhadores, quase sempre determinados por sexo: os homens abrem covas que se distanciam entre si de cerca de três palmos e as mulheres, que lhes seguem, lançam em cada cova quatro grãos de milho, um de feijão ”pedra”, podendo haver também outros tipos de feijão e/ou hortaliças e leguminosas, como roca, uma parente da abóbora.

A monda é um serviço árduo de se retirar as ervas daninhas, quando  o milho ainda está pequeno; a ramonda é um processo idêntico feito mais tarde, quando novas ervas nascem e o milho já está a uma altura considerável.

Bonecas de milho são espigas adolescentes, ainda sem grãos desenvolvidos, mas com “cabelos” sinalizando a quase certeza dazágua.

Katxupa/catxupa ou Cachupa é um dos pratos típicos mais tradicionais de Cabo Verde feito à base de milho e que leva, à mistura, verduras, carnes ou peixes. Existe a cachupa rica e a cachupa pobre, conforme a diversidade dos ingredientes.

[v] De Kotxi em caboverdiano. Coloca-se o milho no pilão e com um pau de cerca de 3-6 kg, bate-se o milho até sair o farelo. O milho “limpo” é utilizado para se fazer a cachupa. Esta atividade que pode ser feita por uma, duas ou várias pessoas tem objetivo diferente do pilar o milho, feito com milho previamente molhado, para se obter a farinha. Ambas as atividades podem ser advento de festas familiares como casamentos e batizados. Nestes casos, o pilão tem sempre várias mulheres e o bater dos paus se faz em  ritmo de música e num desafio entre grupos de mulheres. “Põe-se o milho no pilão” com pelo menos cinco dias de antecedência, para marcar o início das festividades. Com o milho limpo, a farinha ou o xerém/xarém (canjica), se prepararam diferentes pratos típicos de festas, em que, curiosamente, pouco se serve a cachupa.

[vi] Diferentes tipos de terreno e relevo

[vii] Referência à prosa poética “Ilha a ilha” de Ovídio Martins

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