Como se terá depreendido do Capítulo Zero, urge uma corrida de estafetas contra a corrupção fundiária neste país. Urge sim, antes que ela se torne uma normalidade e pareça pura esquisitice preocupar-se com essas coisas.
Não pretendo ser – nem sou – académico. Quero só a verdade e simplicidade de linguagem, dirigindo-me a todos. Mas serei explicativo, não me limitando a arremessar presumidas verdades.
Precisamos duma ética pública de responsabilidade baseada em valores que estimulem a cidadania e o empreendedorismo, mas em que o sucesso não seja reservado a inescrupulosos.
O mega processo crime tão tardiamente iniciado, sabe-se lá se com prescrições ocorridas, não é meu foco, mas não o ignorarei, pois que se centra num caso bem elucidativo do tema corrupção fundiária.
Vi nele gente com poder suficiente para mandar parar “esse homem”, ou seja, substituir o Procurador Geral da República (PGR) por outro que não quisesse atingir o Primeiro Ministro – e isso já diz tudo!
Gente que contou, perante essa pressão sobre o poder judicial, com o discreto e alto apoio daquele de quem se esperaria, caso se pronunciasse (era desnecessário!), que apenas reiterasse confiança na Justiça.
Resta-me desejar sucessos ao novo Procurador-Geral da República. Desejo-lhos com sinceridade, Senhor Dr. Luís José Landim.
Jurei para mim lutar contra a ideia de enfraquecer o Estado, fragilizando para isso a Administração Pública, como guardiã da Legalidade de procedimentos, ao reduzi-la à vontade discricionária de governantes de sapatos brilhantes, perante técnicos que se abaixam para bem servir pois amar César compensa mais que amar Roma.
A Direção-Geral do Patriomónio do Estado (DGPE), de que fui consultor jurídico em regime de exclusividade, de janeiro de 2008 a junho de 2016, depois de 22 anos de advocacia, investigou direitos sobre terrenos, para se saber o que é público (de todos nós) e o que é privado e ficou abismada com o completo estrangulamento da capital por interesses de alegados proprietários de “mares de terrenos”.
Apresentou então sugestões em matéria de defesa dos interesses do Estado – em terrenos e em tudo -, com destaque para um Centro de Defesa deste com virtualidade para apoiar os municípios menos apetrechados e de fortalecimento do Ministério Público na sua missão constitucional de defender, com autonomia, “os direitos dos cidadãos, a legalidade democrática, o interesse público”.
Se é também verdade que o MP representa o Estado, fá-lo porque se pressupõe que este seja, por natureza, defensor daqueles valores, cujo respeito, aliás, o próprio MP pode e deve exigir do Estado-Administração.
Tais sugestões esbarraram com posições pressentidas da Chefia do Governo ou Ministério da Justiça baseadas no princípio do Estado que não intervém para não perturbar os processos privados.
Em Dezembro de 2005, vésperas das legislativas, uma apressada “Lei da Reconciliação Nacional” foi aprovada. Diploma sem nenhum estudo de suporte, que criava uma discórdia artificial atribuindo-a a uma medida presumidamente errada do Partido Único para, com base nesse artifício, trazer a “reconciliação nacional”, almejando a entrega de enormes extensões de terreno, abandonadas há décadas ou nunca ocupadas, a estrangeiros presumidos donos delas.
No âmbito dessa política, foi preparada no MJ e aprovada em agosto de 2005 no Parlamento uma lei arriscada sobre arbitragem (justiça privada consentida, nomeadamente contra o Estado) seguida depois, em outubro, dum decreto-regulamentar sem nexo nem lógica, que nada regulamenta.
Esses diplomas viriam a permitir o depenar de terrenos e dinheiros da Nação, perante um Estado deliberadamente desarmado e sem defesa, por privados posicionados para o efeito através duma organização de ilustres juristas (incluindo deputados da Nação e antigos venerandos e membros do Governo, sempre os mesmos), como árbitros “isentos” (ou seja, juízes), administrando arbitragens absurdas, “na ban-bayan” dos honorários por eles mesmos fixados para si.
Alguém disse que a corrupção é a seiva da Democracia. A ser assim, e considerando os amplos campos de combate que têm sido exibidos nas democracias (reais ou fabricados para sonegar os verdadeiros), o melhor regime que se imaginou deve combater permanentemente a sua própria seiva.
O Poeta cantor da nossa epopeia registou em letras de ouro a caminhada destas ilhas entre “Pão & Fonema”.
O Fonema (palavra) é a nossa Liberdade, que não podemos alienar nem para um Estado garantidor do Pão. O Estado tem de respeitar o nosso livre arbítrio, que nos indica o limite das cedências individuais necessárias à sobrevivência dos valores comuns de que ele (o Estado) é um guardião imaginário.
Teremos de aprender isso dolorosamente, nestes tempos de “Corona Virus”? É que às vezes os extremos tocam-se entre regimes opostos, quando um Mercado distorcido em que procuramos o Pão é o absoluto e o poder financeiro corrompe e anula o Estado, privatizando a Liberdade e o Pão.
Como diz E. Zaffaroni, “o fundamentalismo de mercado radicaliza o dogma do equilíbrio do mercado e o absolutiza até tornar desnecessário o Estado”[1]
Publiquei no jornal ASEMANA de 30 de Abril e em 14 de maio de 2010 cartas abertas denunciando várias ilegalidades registais que passavam sem reparo, até em tribunais.
Referi o arrancamento e falsificação de folhas num livro de matrizes prediais da Praia em julho de 1999 e aconselhei ao PGR e à PJ que se abeirassem da questão.
Vejo agora uma acusação que prova, com documentos e factos, que tal fraude não foi algo de fora para dentro, como uma casa de repente assaltada por ladrões, mas sim coisa bem preparada em termos de cumplicidades.
Mas se na teia tecida cairam muitos incautos, à luz do dia não aparecem certos tecelões e generais.
O mais despudorado em tudo isso é que o município, depois de ter urbanizado, com dinheiros de todos nós, bairros como Palmarejo Pequeno e Terra Branca e alienado lotes a particulares, entregou esses bairros, de repente e “de gaiato”, a um cidadão estrangeiro, com apoio dum grupo nacional “de elite”, que obrigaria os munícipes compradores na Câmara a uma nova compra... “no Naná”.
Antes de abandonar o poder em 2000, o Edil Jacinto Santos, agindo à pressa, permutou (trocou) terrenos municipais com outros terrenos municipais desviados por pessoas amigas; e devolveu a uma empresa promotora da urbanização “Cidadela” terrenos que no Plano Urbanístico Detalhado eram para espaços públicos como praças, jardins, campos desportivos, etc., etc., os quais passaram a ser lotes para edificação e venda pela dita empresa; Etc., etc.
O Edil Felisberto Vieira herdou uma Câmara ingovernável e “esbracejou” inicialmente contra a situação... acabando, ao que tudo indica, por “cair na teia” no segundo mandato.
Porém, em 2008 surgiu uma autêntica parceria municipal (e estatal também) com a Tecnicil e uma diarreia financeira pública aconteceu, por obra e graça das arbitragens depenantes atrás referidas e de outras cumplicidades a favor da referida empresa.
A consequência é que vinte anos volvidos após aprovada a urbanização temos o desastre urbano chamado Cidadela, um dormitório sem água canalizada e com aparência de asfalto nas ruas - mais pedras e terra que outra coisa. Ao menos, não tendo canalização para esgoto, tem fossas séticas para a “vileza” condizente.
Sei que na impossibilidade de contestar os factos que apresentarei, a estratégia (muito antiga contra mim) será tentar enlamear meu nome com mentiras anónimas. A caravana da Verdade passará, perdendo-se os latidos na poeira dos caminhos.
Antes de entrarmos na floresta escura dos assaltos convidaria o leitor a uma breve visita guiada, no próximo capítulo, ao tempo colonial e subsequente, para compreendermos, como se dizia no crioulo de Santo Antão, “certes urisma” relativas à especulação fundiária urbana.
Continua
[1] Revista CV. “Direito e Cidadania”, n.º 8
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