A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária
Cultura

A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária

SÉTIMAS E PRÉ-DERRADEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE A DIFERENCIADA POSTURA LINGUÍSTICA E IDIOMÁTICA DE UM CERTO, DETERMINADO E POTENTE TRIUNVIRATO POLÍTICO PÓS-COLONIAL E DA COGITADA HIPÓTESE DE O PRÉMIO CAMÕES 2018, O CABOVERDIANO GERMANO ALMEIDA, SE TORNAR FINALMENTE UM ESCRITOR BILINGUE, EM LÍNGUA PORTUGUESA E EM IDIOMA CABOVERDIANO, ENTREMEADAS DE ALGUNS DECISIVOS MONÓLOGOS INTERIORES E ESPORÁDICOS E TALVEZ (IN)CONVENIENTES, MAS MUITO CONVINCENTES EXCURSOS À ESQUECIDA, IGNORADA E MAL-CONTADA HISTÓRIA DAS NOSSAS ILHAS SAHELIANAS, OUTRORA ABANDONADAS NO ATLÂNTICO MÉDIO

SECÇÃO SEGUNDA

DIGRESSÕES E DEAMBULAÇÕES

COM ABÍLIO AUGUSTO MONTEIRO DUARTE, DULCE ALMADA DUARTE, MANUEL MONTEIRO DA VEIGA, PEDRO VERONA RODRIGUES PIRES, HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA, ARNALDO CARLOS VASCONCELOS FRANÇA E ALGUM ANDRÉ JOSÉ LEITÃO DA GRAÇA PELOS MUITOS E CONTROVERSOS ALFABETOS ATÉ HOJE LEGADOS À LÍNGUA CABOVERDIANA                                  

1. ABÍLIO AUGUSTO MONTEIRO DUARTE E DULCE ALMADA DUARTE

Completamente diferente, quiçá diametralmente oposta da postura linguística de Aristides Pereira em relação ao crioulo parece ter sido a postura de Abílio Duarte.

Artista plástico talentoso e bem-humorado, ser humano gentil e bon vivant, compositor de canções icónicas, com destaque para as mornas “Na Areia de Salamança” e “Camim de S. Tomé”, bem como para a marcha guerrilheira “Guerra Mendes” e para o hino patriótico “Camponeses, Estudantes, Operários”, de grande força política mobilizadora na luta político-armada para a independência nacional e nos comícios, sessões de esclarecimento, manifestações políticas e festas populares do pós-25 de Abril de 1974, Abílio Augusto Monteiro Duarte foi eleito pelos seus estreantes pares Deputados, reunidos no Salão Nobre da Câmara Municipal da Praia, para Presidente da recém-sufragada Assembleia Nacional Popular, e, por isso, escolhido para fazer a leitura oficial do Texto da Proclamação Solene da Independência Política e da Soberania Nacional da República de Cabo Verde (provavelmente da autoria e/ou co-autoria do seu prestigiado irmão, o intelectual anticolonialista e pan-africanista Manuel de Jesus Monteiro Duarte), a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, na Cidade da Praia. Embora filho de um famoso e erudito sacerdote católico que oficiou durante muito tempo nessa mesma Cidade da Praia, o padre Francisco de Deus Monteiro Duarte, cujo percurso de vida, aliás, é descrito e retratado no romance Manduna de João Tiene, de Pedro Duarte, o mais velho dos muitos e culturalmente produtivos irmãos Monteiro Duarte, Abílio Augusto Monteiro Duarte foi e era sobretudo o marido, o amigo, o camarada e o companheiro de luta de Dulce Almada Duarte. Por sua vez, Dulce Almada Duarte era uma das mais acérrimas e cientificamente melhor municiadas, mais bem apetrechadas e sustentadas teóricas caboverdianas da cultura e uma das mais abalizadas defensoras do crioulo, da sua contínua promoção e dignificação, incluindo da sua introdução no ensino em Cabo Verde, quer como disciplina curricular, quer como uma das línguas, conjuntamente com o português, do ensino bilingue, tendo escrito o célebre livro Cabo Verde-Bilinguismo ou Diglossia, de grande repercussão político-cultural e sociolinguística, tendo-se depois imensamente popularizado o título desse mesmo livro.

Daí que Abílio Duarte nunca se tivesse coibido de orientar comícios, encontros, sessões plenárias da Assembleia Nacional Popular e outros eventos similares, dirigindo-se “às massas populares do nosso povo africano de Cabo Verde”, como gostava de dizer, directamente em língua caboverdiana, quer na variante sua nativa da ilha de Santiago, em especial na sub-variante da sua cidade natal da Praia, quer na variante de São Nicolau, a ilha natal da sua mulher, quer ainda na variante de São Vicente, ilha pela qual foi deputado nacional desde as primeiras eleições referendárias de 30 de Junho de 1975 que conduziram à proclamação da independência nacional de Cabo Verde e ao reconhecimento tácito do regime de partido único, já vigente de facto em Cabo Verde, desde a prisão e a neutralização política dos adversários do PAIGC em Dezembro de 1974 e a entrada em funções do Governo de Transição do Estado de Cabo Verde, instituído pelos Acordos de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, entre a República Portuguesa e o PAIGC, depois consagrado de jure pela LOPE (Lei da Organização Política do Estado), até às eleições democráticas multipartidárias de 13 de Janeiro de 1991, realizadas na sequência e como necessário corolário da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 e da correlativa pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana,depois consagrada de jure pela revisão constitucional de Setembro de 1990. Diga-se que a Ilha de São Vicente e, em especial, a sua doce, dançarina, palpitante e eufórica cidade do Mindelo, pareciam ocupar um lugar de eleição na alma e no coração de Abílio Duarte. Com efeito, Mindelo era uma urbe (a maior cidade caboverdiana na altura) que Abílio Duarte muito apreciou e amou e onde fez o Liceu e mobilizou para a causa da independência nacional, como enviado especial do recém-fundado PAI (Partido Africano da Independência-União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde), elementos jovens do operariado mindelense e alguns estudantes do famoso Terceiro Ciclo do Liceu Nacional Gil Eanes, o único então existente em todo o arquipélago caboverdiano, destacando-se, de entre esses jovens estudantes e operários, Silvino da Luz, Luís Fonseca, Olívio Pires, António Neves…

Curiosamente, e apesar de ser um nacionalista africano da primeira hora e fiável companheiro da luta pela independência binacional de Amílcar Cabral desde os primeiros tempos da chegada e da estada deste em Bissau, a partir de 1952, Abílio Duarte não participou no acto formal da fundação clandestina do PAI, a 19 de Setembro de 1956, pois que se encontrava, exactamente nesse mesmo dia, em Paris, a participar, na Universidade de Sorbonne, no Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros. Por isso, e numa flagrante ilustração de uma grande injustiça histórica, também provavelmente praticada com o bissau-guineense, filho de pais caboverdianos, Rafael Barbosa, o seu nome não consta do elenco dos fundadores formais do PAIGC (nome definitivo adoptado em 1960, para prevenir e atalhar qualquer confusão com o PAI senegalês, partido marxista-leninista banido pelo Presidente Leopold Sédar Senghor por mor do seu ideário comunista e anti-neocolonialista), sendo que esses fundadores oficiais foram numerados na História oficiosa do partido binacional como integrando-se de seis pessoas, designadamente dos caboverdianos Amílcar Cabral (nascido em Bafatá, depois considerado o militante nº um e líder imortal do nosso glorioso partido), Aristides Pereira (natural da ilha da Boavista), Luís Cabral (nascido em Bissau), Fernando Fortes (nascido em São Vicente), Júlio de Almeida (nascido em São Vicente) e do bissau-guineense Elysée Turpin (nascido em Bissau).

2. PEDRO VERONA RODRIGUES PIRES E MANUEL MONTEIRO DA VEIGA, INTERCALADOS POR UM QUIÇÁ DESPROPOSITADO E APÓCRIFO COMENTÁRIO DE UM ASSUMIDO E CONTUNDENTE ALUPECADOR

Quanto a Pedro Pires, pragmático como era conhecido e se dava a conhecer (ou, melhor dito, fazia questão de ser e dar-se a conhecer), achava que, em questões linguísticas, se deveria ser sobretudo realista e ter os pés muito bem assentes na terra, em face dos muitos constrangimentos que o país recém-independente enfrentava, com as secas que nunca mais acabavam e um povo inteiro que precisava sobretudo do pão para se alimentar, ou, dito de outro modo, do milho, do feijão, do óleo, do leite, do açúcar e de outros mantimentos e bens alimentares para subsistir e sobreviver fisicamente e afastar para sempre o espectro da fome dos seus horizontes de caboverdianos, assaz fustigados e traumatizados enquanto habitantes multisseculares de uma terra conhecida em tempos de outrora como arquipélago das secas, das estiagens e das fomes.

Mas, acrescentava logo, de imediato: como também já dizia e predicava Jesus Cristo, nem só do pão vive o homem.

E há que ter também em devida conta os ensinamentos, sempre pertinentes e actuais, do nosso camarada e líder imortal Amílcar Cabral. Não defendia ele que a independência é simultaneamente um acto de cultura e um factor de cultura? Não conquistámos a independência nacional para, pensando com as nossas próprias cabeças e caminhando com os nossos próprios pés, usufruirmos na plenitude da nossa própria cultura e, especialmente, da nossa língua nacional, tão reprimida, ostracizada e perseguida nas escolas coloniais, tão vilipendiada e causticada nas suas potencialidades intelectuais, querendo muitos reduzi-la a mera língua de expressão oral de afectos e emoções, da domesticidade e da informalidade de comunicação (Parêntese aposto por um atento e paciente observador das posturas diferenciadas dos três magníficos e omnipotentes membros do acima referenciado triunvirato do poder nacional pós-colonial dos tempos de outrora, sinceramente indignado com as atitudes de certos actores e protagonistas dos cenários actuais, dos tempos de agora, da calamidade pública sociolinguística da diglossia: mas não foi exactamente o que há dias vimos e ouvimos dizer no programa televisivo Nha Terra, Nha Cretcheu o tosca e celeremente eleito Presidente da Direcção da Academia Cabo-Verdiana de Letras (ACL), julgando quiçá que tinha sido pré-seleccionado por gratos amigos de peito e depois apressadamente confirmado pelos seus pares presentes no acto de prestação de contas dos órgãos sociais cessantes que foi também acto eleitoral, não para dirigir a mais selecta das confrarias, organizações, associações, agremiações, o que se queira, dos escritores e letrados das nossas ilhas e diásporas, enfim, dos literatos caboverdianos presentes e ausentes, mas para coordenar a secção de letras da Sociedade Cabo-Verdiana de Autores, mais conhecida por SOCA, já que, segundo a opinião expressa de alguns confrades, não tendo sequer mérito, devidamente comprovado e consubstanciado em obras, para integrar a ACL como seu membro efectivo, honorário ou correspondente, ninguém lhe pode todavia negar a sua qualidade de autor. Fosse ele devidamente devolvido ao cargo, a que, aliás, nunca, e até agora, renunciou, de Presidente da Direcção da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC) que, seja dita a verdade toda, conseguiu levar a uma situação de inactividade cultural e irrelevância social equiparáveis a um estado de coma profundo e genuíno, quase irreversível, e isso, convenhamos, é obra assinalável, ser-lhe-ia certamente instaurado um competente processo de inquérito e/ou disciplinar por mais que notória gestão danosa e por grosseira violação dos Estatutos da AEC, pois que uma das essenciais atribuições da mais antiga das associações de escritores e dos demais autores caboverdianos, reconhecida enquanto tal, e, em especial, dos titulares dos seus órgãos sociais, é precisa e exactamente a defesa e a promoção activa do bilinguismo caboverdiano e, em especial, a defesa da língua caboverdiana concomitantemente com a defesa da língua portuguesa. Assinale-se que como sanção disciplinar poderia ser aplicado ao infractor não só a sua devolução às fileiras indistintas da SOCA e/ou da AEC, e correlativo e estrito confinamento nas suas inofensivas hostes, mas também, e tendo sempre em conta o seu título académico de Doutor em Ciências da Comunicação, que parece ser efectivamente, tendo em conta os altos cargos universitários já desempenhados e as suas actuais funções de professor universitário e grande entrevistador da RTC (Rádio e Televisão de Cabo Verde), a sua incorporação, voluntária ou compulsiva, na nado-morta Academia Cabo-Verdiana de Ciências com a incumbência expressa de insuflar-lhe o sopro inicial da vida, e, assim, redimir-se dos pecados da impaciência e da gula ao deixar-se indicar, prematura e apressadamente, para o raríssimo e prestigiante cargo de Presidente da Academia Cabo-Verdiana de Letras).

Fechado o muito contundente, tempestivo e oportuno parêntese que, segundo os dizeres nunca pronunciados do antigo Primeiro-Ministro da Primeira República e antigo Presidente na Segunda República, era notoriamente cúmplice e solidário dos amargos comentários do Professor Doutor Manuel Monteiro da Veiga sobre a mesma matéria constantes do seu blogue Odju d´Águ, foi prosseguindo Pedro Pires nas suas retrospectivas e reincidentes explanações:

E que língua é a nossa, de todos os caboverdianos, se não o nosso crioulo, falado e compreendido em todas as ilhas e em todas as comunidades de emigrantes caboverdianos espalhados pelo mundo e presente nos mais diferentes países do nosso planeta, e, até, compreendido por outros povos, como efectivamente acontece na República irmã da Guiné-Bissau, na região senegalesa da Casamança e dizem que, até, nas ilhas ABC (Aruba, Bonaire e Curaçao) das Antilhas Holandesas, cuja bandeira, aliás, servirá um dia de modelo de inspiração para a nova e, na óptica de alguns, revanchista bandeira da Segunda República de Cabo Verde que virá substituir a nossa actual bandeira pan-africanista da independência nacional, certamente por termos ousado partilhá-la, à nossa bandeira primeva e primordial da estrela negra, conjuntamente com o hino nacional “Esta é a nossa pátria amada”, com a República irmã da Guiné-Bissau, acrescentando, é certo, à estrela negra e às cores ouro-verde-rubra da bandeira da unidade e da luta o simbólico milho e a característica concha dos mares do nosso arquipélago (também búzio da tabanca), e insistido, e persistido nessa partilha mesmo depois da abrupta falência pós-colonial do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, por íntimo e lídimo respeito pelo tão almejado sonho de Amílcar Cabral de construção de uma pátria africana unida e progressiva entre os povos irmãos livres e independentes da Guiné e de Cabo Verde, e, mais tarde, e de forma gradual e segura, entre todos os povos africanos, e tão bem simbolizada na bandeira da unidade e luta, que também é bandeira simbólica de um lato pan-africanismo abrangente dos povos todos da África (em especial, da África subsaariana) e de todas as diásporas afrodescendentes e, por isso, é igualmente bandeira do rastafarismo.

Mas, Amílcar Cabral também dizia que o português é a melhor herança deixada pelo colonialismo português. E, antes de o introduzirmos nas escolas, precisamos estudar mais o nosso crioulo, para estabelecermos regras fiáveis, seguras e reconhecidas de escrita e de gramática. Já demos o primeiro passo, com a realização, em 1979, na cidade do Mindelo, do Colóquio Internacional sobre o Crioulo de Cabo Verde, com o devido apoio e a total anuência da UNESCO, e com a consequente aprovação de um alfabeto para a escrita do nosso crioulo, o já célebre Alfabeto do Mindelo. Isso foi muito bom, mas estou a ver muita gente, por vezes com grande influência social e cultural, a torcer o nariz a esse novo alfabeto, sobretudo por causa da chamada questão dos chapéus. Pelos vistos, essas personalidades, devidamente apoiadas principalmente por artistas intérpretes e compositores musicais, muito ligados à escrita legada por Eugénio Tavares, B. Lèza, Ano Nobo ou Manel de Novas, não aturam os chapéus e, mais, consideram-nos absolutamente insuportáveis e, por isso mesmo, inaceitáveis.

Temos de ser realmente muito pragmáticos e, sobretudo, inteligentes, e sendo inteligentes e convictamente caboverdianos, como, mutatis mutandis em relação a uma sua frase de 1931, poderia ter dito Baltasar Lopes da Silva, temos de também ser pacientes e tolerantes com todos os nossos compatriotas caboverdianos e todos os elementos válidos e potencialmente úteis do nosso povo das ilhas e diásporas.

Porque ultrapassada a chamada questão dos chapéus, com um conveniente e necessário Colóquio de Tira-Chapéu, se o nosso futuro Professor Doutor Manuel Monteiro da Veiga concordar, é claro, na sua condição de maior autoridade caboverdiana actual na área da crioulística (atenção, o Colóquio de Tira-Chapéu não tem de ser necessariamente realizado na localidade suburbana praiense com esse excelso nome, denotativo da profunda religiosidade tradicional do nosso povo de Cabo Verde - africano sim, mas também cristão-, mas penso, na minha humilde opinião de leigo na matéria, que os chapéus são mesmo para serem (re) tirados, e não somente afrouxados, como sugere o outro nome, alternativo, da localidade, Afrouxa-Chapéu), dizia eu que superada a controversa questão dos chapéus, os inveterados detractores do crioulo, ou, pelo menos, de um alfabeto de base fonético-fonológica, vão trazer de certeza à baila uma nova e igualmente controversa questão, designadamente a questão do c(k)apa.

Tendo-se-lhes explicado que o c(k)apa (com kapa ou com cê, tanto faz) não é uma letra africana, como se vem propalando por aí, até por gente supostamente muito bem informada e erudita, mas uma letra genuinamente grega, e que nem se trata de uma despromoção linguística da letra cê, mas tão-somente da melhor forma de representar de modo uniforme, funcional e coerente um determinado, característico e muito corrente som da língua caboverdiana, tornando inútil a disparidade da representação desse único som por várias letras, como o c, o q e o próprio k, contestarão que o c(k)apa é uma letra tipicamente badia, tendo sido, aliás, introduzida na escrita da língua caboverdiana pelo reconhecidamente radical afrocrioulista e pan-africanista, o poeta negritudista badio Kaoberdiano Dambará.

Elucidados sobre as vantagens e as potencialidades do novo Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano, mais conhecido pelos acrónimos ALUPEC (até que, enfim, se foram definitivamente para o nunca mais do caixote de lixo da História ou, pelo menos, da nossa Memória Colectiva e da História da Escrita da Língua Caboverdiana, os famigerados chapéus!) em permitir escrever com total e fidedigna autenticidade todos os ideolectos de todas as variantes de todas as ilhas de todas as categoria sociais do povo das ilhas e diásporas, lembrar-se-ão da pretensa insolubilidade da representação do cê da vitamina c, em razão da inapelável extirpação da letra cê desse novo e compromissório alfabeto caboverdiano.

Explicada a questão do cê da vitamina c (afinal, uma mera questão de uso de siglas, tal como nos casos de kw, km, kg, etc.), trarão à baila a questão da pretensa e intolerável discriminação das ilhas todas que não a chamada grande ilha de Santiago (afinal, uma vetusta, atrasada e unanimemente considerada a mais negra e (negro-)africana de todas as ilhas de Cabo Verde, ademais uma diminuta ilha de menos de mil quilómetros quadrados, por isso, nem sequer a maior do nosso Atlântico Médio!) e inventarão uma entidade fantasmática a que atribuirão a odiosa denominação de República de Santiago que, alegadamente, se quereria sobrepor a todas as outras ilhas de Cabo Verde, e em especial à ilha de São Vicente, alegando ser o que efectivamente é: a ilha maior, de povoamento mais antigo e portadora de maior diversidade cultural, ademais com mais de metade da população do país, isto é, com a maioria dos falantes nativos do idioma caboverdiano.

Intentando-se fazer um compromisso com as elites e as populações da ilha de São Vicente, enquanto ilha detentora da segunda variante da língua caboverdiana mais falada em Cabo Verde, e, por isso, considerada a segunda ilha caboverdiana socio-linguisticamente mais importante e influente, argumentar-se-á com a supostamente grosseira, persistente, muito antiga, e, até agora, impune negligenciação das variantes dialectais de todas as demais ilhas habitadas do arquipélago caboverdiano, todas invariável e inevitavelmente tratadas como ilhas periféricas e marginais, quadro que, admitem, embora com alguma reserva por notório défice de conhecimento, também pode integrar na perfeição todo o interior da ilha de Santiago.

Aceitando-se finalmente que a oficialização da língua caboverdiana deve primacialmente significar a simultânea oficialização de todas as variantes insulares dessa mesma língua, replicarão que, afinal, existiria uma agenda secreta dos defensores do crioulo caboverdiano, e, em especial, dos alupecadores mais ferrenhos e radicais, e que essa agenda escondida consistiria exactamente nas reiteradas tentativas de silenciosa e paulatina extirpação da língua portuguesa da vida quotidiana das boas, amoráveis e gratas gentes caboverdianas radicadas nas ilhas, e trazem como prova visível e irrefutável dessa afirmação o calamitoso estado em que efectivamente se encontra o português em Cabo Verde, arquipélago que, segundo afirmam e reiteram, era outrora conhecido e afamado pela excepcional qualidade dos seus letrados e do seu perfeito domínio do português escrito e falado.

Só que se esqueceram que, neste preciso momento, os mais proficientes cultores da língua portuguesa em Cabo Verde ou, melhor, entre os caboverdianos das ilhas e diásporas, quer se considere a língua portuguesa nas suas vertentes mais eruditas e nos seus registos mais elevados, quer se configure a mesma língua nas suas modalidades mais chãs, e, até, nas suas gírias mais fesceninas, chungas e malcriadas são exactamente os permanentes defensores do crioulo, em especial, os alupecadores. A par do culto da língua portuguesa e, eventualmente, de outras línguas europeias, e não só, que também perfazem o bilinguismo caboverdiano, são os alupecadores, na sua grande, profícua e prolixa maioria, os mais acérrimos defensores da ampla valorização da língua caboverdiana, mediante a sua plena oficialização, sempre em paridade com o português (ainda que inicialmente de forma meramente simbólico-política), como, aliás, determina, explícita e peremptoriamente, o artº 9º da Constituição da República de Cabo Verde, desde a revisão constitucional de 1999.

E um imenso vazio de contra-argumentos veio cobrir com um denso silêncio ainda mais árduo e espesso a sufocada atmosfera da pandemia e da sua confrangedora ausência de turistas, cooperantes, investidores, expatriados e outros aventureiros transnacionais da alardeada sabura arquipelágica e da compenetrada morabeza islenha, falantes habituais e usuários assíduos da língua portuguesa nas ilhas dos tantos solícitos e solicitados sol, mar e vento, agora ausentes por mor das cercas sanitárias erigidas em torno do arquipélago da música e da sodade e de cada uma das suas ilhas, agora verdadeiramente insuladas e insularizadas, por isso, muito dadas a sonhos de fuga e evasão para as outras ilhas-irmãs, de rompante pensadas e imaginadas como sendo verdadeiras e autênticas Pasárgadas e não as frementes e furiosas Anti-Pasárgadas cogitadas por Ovídio Martins. Quem sabe, talvez isso do evasionismo intra-arquipelágico e inter-islenho ajude no turismo interno que se quer incrementar no futuro, no período de gradual descofinamento pós-estado de emergência e pós-estado de calamidade pública, e nos tempos vindouros, muito augurados, da pós-pandemia, de um turismo global com uma população mundial imunizada e/ou vacinada, alegre e livre nas nossas praias ensolaradas, totalmente esquecida do tal paciente inglês

3. HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA, ARNALDO CARLOS VASCONCELOS FRANÇA E ALGUM JOSÉ ANDRÉ LEITÃO DA GRAÇA

Quem parece nunca se ter conformado com alfabetos do idioma crioulo de base fonético-fonológica, independentemente das suas eventuais concessões à etimologia, são o claridoso Baltasar Lopes da Silva e os certezistas e neo-claridosos Henrique Teixeira de Sousa e Arnaldo França, usuários habituais do português coloquial caboverdiano de letrados nas suas conversas com gentes das ilhas da sua estirpe. Embora nunca tenha visto Teixeira de Sousa a falar crioulo e nunca tenha falado em crioulo com Arnaldo França, a quem tinha o hábito de visitar tanto no seu antigo gabinete de Ministro-Adjunto do Ministro das Finanças (função então acumulada por Pedro Pires com o seu cargo de Primeiro-Ministro), como também no seu mais recente gabinete pós-mudança política de professor de literatura na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário, da Pracinha da Escola Grande, lembro-me da minha grande surpresa quando, pela primeira vez, ouvi Arnaldo França a falar crioulo. Foi na ilha da Boavista e estávamos em amena e sempre informativa e, de outro modo, produtiva cavaqueira depois do lançamento do livro de António Germano Lima, intitulado, se não me engano, Boavista-Ilha de Capitães, do Lundum e da Morna, do qual o Arnaldo França e o Eutrópio Lima da Cruz foram os brilhantes apresentadores, estando eu presente no acto a representar a editora, a Spleen-Edições, oportunidade que não podia desperdiçar, pois que seria a minha primeira ocasião para finalmente conhecer a ilha da Boavista. Achei estranho que Arnaldo França conversasse com o Eutrópio Lima da Cruz e com o sobrinho deste, António Germano Lima, exclusivamente em crioulo da Boavista.

Como se sabe, tudo tem uma explicação: Arnaldo França (Dick para os familiares mais próximos e, quiçá, para, pelo menos, um desses seus amigos íntimos) tinha passado a infância na ilha da Boavista e, assim, pôde aprender o seu crioulo que muito prezava e adorava. Mais tarde, fez os estudos liceais no Liceu Gil Eanes de São Vicente, tendo-se certamente decorrido a sua vida de estudante liceal sob os majestáticos auspícios do Monte Cara e as cálidas brisas marítimas do Porto Grande, sempre rodeado das cantantes sonoridades do crioulo da cidade talássica do norte do arquipélago caboverdiano. Dai o especial apego de Arnaldo França aos crioulos dessas duas ilhas do Barlavento caboverdiano.

E escrevia, e escreveu durante toda a sua vida, obra poética e ensaística, mantida inédita, até agora e em grande parte, e traduzindo para um crioulo badio com influência djarfoguense dos seus antepassados grandes poetas portugueses como o Camões dos sonetos (de que, incluindo o soneto inglês, ele, Arnaldo França, era um raro e exímio cultor entre os certezistas e os neo-claridosos), Fernando Pessoa, David Mourão-Ferreira….

Na sua cidade natal da Praia, onde praticamente somente viveu na idade adulta, parece que, fora dos circuitos caseiros e familiares mais próximos e íntimos, só falava em português. O mesmo acontecia curiosamente com José Leitão da Graça, também ele um fluente falante habitual do português e um exímio locutor do crioulo de São Vicente, ilha onde, durante os seus tempos de estudante liceal, se sentia completamente livre do que ele, quiçá, achava o castrador e intolerável poder paternal localizado na sua cidade natal da Praia.

Lembro-me bem como Teixeira de Sousa se mostrava insatisfeito (chateado ou, até, indignado, seriam as palavras mais certeiras para o caso) com alguns diálogos do filme Ilhéu de Contenda, de Leão Lopes, baseado no romance homónimo da sua autoria e que marcaram a estreia de ambos, do foguense/mindelense Henrique Teixeira de Sousa, em 1978, nesse género literário, e do realizador santantonense/mindelense, na realização cinematográfica. Dizia Teixeira de Sousa que, não obstante a sua postura passada, ainda com muitos resquícios no presente, de segregação e discriminação raciais em relação aos negros e mulatos (salvo, diga-se, no que respeitava às relações sociais que tinha que manter com eles enquanto clientes e trabalhadores deles dependentes e no que se refere ao intenso e promíscuo tráfego sexual com as mulheres negras e mulatas), adveniente da sua categorização socio-racial como oligarquia branca crioula, os brancos da ilha do Fogo eram cultural e linguisticamente tão caboverdianos como os demais caboverdianos de todas as outras ilhas habitadas de Cabo Verde. Tanto mais que no seu quotidiano faziam uso, mesmo entre os da sua igualha, do crioulo castiço (basilectal) da sua altiva ilha natal. Ilustrativo a esse respeito é um episódio do romance Na Ribeira de Deus, em que se descreve um recital de poesia promovido pelo grupo Sete-Estrêlo, da facção da Vila-Riba da dividida oligarquia branca da Vila de São Filipe, e do pasmo do auditório presente, supostamente selecto, todavia incapaz de penetrar nos mistérios e nas nuances de um soneto de Camões, mesmo depois de devidamente explicado e descodificado pelo seu dizedor/declamador, o mulato José de Almeida, professor primário originário da ilha de São Vicente e colocado na Vila de São Filipe e excepcionalmente admitido no elitista grupo Sete-Estrêlo, ferreamente reservado a jovens adultos brancos, graças à sua estreita amizade com o líder do grupo, Anildo Vieira, obrigando o mesmo líder a explicar em crioulo o poema do grande vate luso. Diz Anildo Vieira a propósito do poema de Luiz Vaz de Camões, no episódio acima referido do romance Na Ribeira de Deus: “Já devia ter agradecido ao José de Almeida por ter escolhido um soneto que fala da esperança, pois Esperança é o meu símbolo no grupo. Muito obrigado, José. Amor também é outro símbolo do Sete-Estrêlo. O seu titular que dirija igualmente os seus agradecimentos. De sorte que não foi por acaso que o Amizade nos recitou essa poesia. E a explicação, posto que muito resumida, foi tão brilhante quanto o soneto. Agora, “ Xá-me explicâ nhôs el em criolo. Camões tâ gostaba cheo dum rapariga qu´el ca podeba casâ co el pamó quistan di família, di fortuna, di condiçan social. Antã Camões substituí sê sperança nês amor pâ bersos magoado comâ pesar de perdedo na mar sim sperança di achâ porto di abrigo. El tâ sentiba um cusa ta doêl na alma qui era afinal es grandi amor sempre na tona d´ago”. Perceberam agora?”

Por isso, dizia Teixeira de Sousa não compreender porque é que as personagens brancas do filme Ilhéu de Contenda, de Leão Lopes, só se comunicavam em português, tanto entre si, como também com personagens de outras pertenças e identidades socio-raciais, isso tanto no espaço público como na intimidade da vida familiar e, até, da alcova. Isso lhe parecia tanto mais estranho quando as personagens mulatas e negras se comunicavam predominantemente em crioulo, não só do Fogo, como também de outras ilhas, com destaque para o da ilha de São Vicente, mesmo quando fossem ambientadas e caracterizados como seres humanos nascidos, crescidos e amadurecidos na declivosa ardência da ilha do vulcão. Tal estratégia fílmica podia levar a supor-se que, para além das contradições e dos antagonismos socio-raciais típicos do colonialismo interno que, segundo o próprio Teixeira de Sousa, caracterizava a sociedade foguense no imediato período pós-escravocrata, haveria dicotomizações culturais e linguísticas típicas das colónias portuguesas de povoamento, como Angola e Moçambique, em que os brancos ou eram colonos nascidos na metrópole colonial ou eram brancos autóctones descendentes de colonos, sendo todos partes integrantes do que Amílcar Cabral denominava classe colonial para a opor à nação-classe, dominada e culturalmente distinta ou diferenciada da mesma classe colonial. Em ambos os casos, fazia notar Teixeira de Sousa, esses brancos de Angola e de Moçambique eram portadores de uma identidade cultural nitidamente portuguesa, incluindo a sua expressão linguística lusa, mesmo se mais ou menos nativizada às circunstâncias geográfico-ecológicas e históricas específicas dos respectivos territórios. Completamente diferente era o caso de Cabo Verde, e, em especial, o caso da ilha do Fogo, em que o branco nativo era identitariamente portador da cultura crioula caboverdiana e da sua principal expressão, o idioma crioulo de Cabo Verde, na sua variante da ilha do Fogo.

                            

      

 

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