
Jairzinho Lopes Pereira, prestigiado académico cabo-verdiano, saiu da terra, mas a terra nunca saiu dele. De tal modo que os seus pergaminhos académicos nunca apagaram o agricultor que transporta no peito e que, várias vezes por ano, o fazem percorrer a longa jornada de Lovaina (Bélgica), onde é investigador e professor na Universidade Católica, para se reencontrar com São Salvador do Mundo, terra que o viu nascer e com a qual tem uma indelével relação de paixão e identidade. O académico acaba de dar à estampa um surpreendente livro de poesia e prosa poética.
“Ao pé da montanha, mandam as palavras” – editado pela Tombalivros/Editora d’Ideias, de Coimbra, Portugal - é o livro de poesia e prosa poética que, surpreendentemente, Jairzinho Lopes Pereira deu à estampa e já foi apresentado na cidade da Praia e em Picos. Surpreendente porque este imprevisto poeta, convencido a editar por estímulo de um seu antigo catequista, primeiro com publicação de textos avulsos e, mais tarde, adquirindo a dimensão maior de um livro impresso, revela um poeta de mão cheia e uma escrita que coloca o livro no que de melhor se publicou, neste estilo literário, em Cabo Verde, nos últimos anos.
Sob o heterónimo Auréllius Áridus, um sobrenome que nos remonta à aridez das terras da ilha de Santiago, Jairzinho Lopes Pereira, historiador, teólogo e académico, leva-nos numa jornada pelos caminhos deste mundo, numa dupla viagem, geográfica e ao universo das ideias, partindo de Picos, com registos de idas e vindas, entremeados com referências a nomes maiores do pensamento da humanidade e revisitando diversas tradições, como a Bíblia e a cultura greco-romana e latina, tendo como companheiros de viagem Santo Agostinho, Montesquieu, Jean-paul Sartre, Immanuel Kant, mas, também, Nha Nacia Gomi, Bibinha Cabral, Corsino Fortes e Eugénio Tavares, entre outras referências da cabo-verdianidade.
A dimensão universal das palavras
Literatura, filosofia, teologia, artes e ciências humanas, entrecruzam-se em “Ao pé da montanha, mandam as palavras” e dá-nos a dimensão universal dos vocábulos de Jairzinho Lopes Pereira, provocando-nos copiosas interpretações, nessa viagem, que parte de São Salvador do Mundo para o mundo (curiosa esta analogia com o nome da terra), levando no bojo os seus ancestrais, numa simbiose perfeita com a grande cultura que, aqui, num aparentemente estranho processo democrático é engrandecida com a influência vivencial dos mais simples. É um ritual de celebração, de exaltação das coisas simples da terra que, no fundo, para além do percurso académico do autor, são a essência da sua identidade mais profunda.
Obra entendida como “revolucionária no tom”, assim a define uma apresentadora do seu livro, “Ao pé da montanha, mandam as palavras” é um estímulo à permanente inquietude, num registo onde o belo e as memórias percorrem um caminho autónomo, com as palavras de Auréllius Áridus a deixarem de lhe pertencer e a se tornarem património do próprio leitor, numa apropriação onde adquirem vida própria.
Uma feliz casualidade transformada em amor
Licenciado em História pela Universidade de Coimbra, Jairzinho Lopes Pereira fez o doutoramento em Teologia com uma tese sobre Santa Cristina e Martinho Lutero, durante o doutoramento teve oportunidade de visitar a Bélgica, país onde foi convidado, como investigador do Departamento de Filosofia da Universidade de Lovaina, onde acabou por assentar arraiais.
Vivendo entre a Bélgica, a Finlândia, onde fez o doutoramento, e a Noruega, onde fez quatro anos pós-doutorais, e, naturalmente, São Salvador do Mundo, quis a casualidade ter-se encontrado na rua com uma jovem, um amor à primeira vista que o levou a um casamento e à paternidade, de que resultaram dois filhos, atualmente com 10 e 13 anos de idade.
Desde que saiu em 2001, para fazer os seus estudos académicos na Universidade de Coimbra, foi em 2022 que Jairzinho Lopes Pereira passou o seu mais logo período em Cabo Verde, um semestre, em Picos, claro, que visita em média cinco vezes por ano, talvez em busca do oxigénio que fortalece a sua existência mais profunda.
É que o investigador e professor universitário, agora poeta revelado publicamente, assume sentir-se um bocado mal fora de Cabo Verde, embora procurando dar, além-fronteira, o seu contributo, levando um cadinho da sua cabo-verdianidade ao palco destacado da academia, para ele um percurso que quer o mais possível efémero, porque transporta no peito uma espécie de culpa pela ausência da terra, onde gostaria de tentar fazer a diferença. De todo o modo, há uma certeza que lhe percorre as veias: mais tarde ou mais cedo, o regresso será inevitável. De tal modo que tem casa montada em Picos, num simbolismo fáctico em que as pedras são alicerces do retorno.

Um agricultor dentro de si
Pese a sua circunstância de académico e intelectual, que se move com destreza pelos salões da elite europeia e cabo-verdiana, Jairzinho Lopes Pereira sublima a sua mais incontornável natureza de agricultor, do sentir e remexer a terra que, nas suas idas regulares a Picos, o transmutam, de enxada em punho, ao cheiro e ao toque da terra por onde passaram seus ancestrais.
Assume, contudo, sentir-se desencantado com a lavoura, com essa insistência na agricultura do milho e do feijão, onde a enxada é o seu símbolo mais emblemático. Por isso, considera que o que caminho que pode levar ao desenvolvimento da terra passa pela industrialização.
Mas, a agricultura, mesmo assim, apesar do atraso nos campos, continua sendo um dos grandes prazeres da sua vida. E, enquanto estudioso do latim, sublima uma expressão muito usada na modernidade: a educação. Um termo que os romanos partilhavam em dois sentidos diferentes, instruir, cuidar das crianças, mas também cuidar das plantas, no sentido de plantar, semear. Dois sentidos que para ele são quase uma circunstância transcendente, faz questão de enfatizar.
Foquemo-nos num fragmento de poema (Mataram a minha mãe), onde Auréllius Áridus – isto é, Jairzinho Lopes Pereira – viaja por uma real memória dolorosa sobre o assassinato de sua mãe aos 38 anos, tendo o autor 13. Um abrupto fim da vida ocorrido à porta da casa de família, onde, o ano passado, na sombra das ruínas, o autor escreveu o poema, um hino a um amor que persiste na trágica ausência e o tem marcado vida fora.
Nas suas atras câmaras
faltam os luminosos olhos da minha Mãe
no pátio desapareceram as blandífluas aromas
dos lírios e das rosas, educados para a vida,
o céu já não sabe lisonjear as montanhas
com o seu cerúleo charme de terno cobertor
faz falta a doçura da minha Mãe
“Ao pé da montanha, mandam as palavras” trata-se de uma obra de leitura imperdível, um hino à cabo-verdianidade, às memórias e à fundamental ligação ancestral à terra, aos cheiros e ao epidérmico toque dos afetos.

Um invejável trajeto académico
Para início de conversa sobre o invejável trajeto académico de Jairzinho Lopes Pereira, convirá dizer ser o primeiro cabo-verdiano a ser membro, desde 2021, da Academia Portuguesa de História, em reconhecimento do seu trabalho.
Licenciado em História pela Universidade de Coimbra, mestre em Ciência Política, pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Lovaina, na Bélgica, e doutorado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da Universidade de Helsínquia, na Finlândia, Jairzinho Lopes Pereira tem vasta obra académica publicada (*).
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Artigos e livros
[2025] Colonial Violence in Africa. Secular and Ecclesiastical Perspectives (Late Nineteenth and Twentieth Centuries), edited by Jairzinho Lopes Pereira, London, Palgrave MacMillan (Cambridge Imperial and Post-colonial Studies, 2025) – sob contrato, no prelo.
[2025] Transloyalties, Connected Histories and World Christianity During the Period of Decolonization and the Cold War: 1945-1970, edited by Ellen Vea Rosnes, Joar Haga, Jairzinho Lopes Pereira, Frieder Ludwig, Marina Wang, New York, Routledge, 2025.
[2025] Transloyalties, Connected Histories and World Christianity During the Interwar Period: 1919-1939, edited by Ellen Vea Rosnes, Joar Haga, Jairzinho Lopes Pereira, Frieder Ludwig, Marina Wang, New York, Routledge, 2025.
[2024] Pereira, Jairzinho Lopes, Scripta Ecclesiastica: A Diocese de Santiago de Cabo Verde nos arquivos europeus (volume II, 1859-1871) /Scripta Ecclesiastica. The History of the Diocese of Santiago of Cape Verde Through Archival Records Preserved in Europe (volume II, 1859-1871), Lisboa, Academia Portuguesa da História, 2024 – escrito em inglês e em português.
[2023] Pereira, Jairzinho Lopes, Scripta Ecclesiastica: A Diocese de Santiago de Cabo Verde nos arquivos europeus (1835-1859)/ Scripta Ecclesiastica. The History of the Diocese of Santiago of Cape Verde Through Archival Records Preserved in Europe (1835-1859), Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2023 - escrito em inglês e em português.
[2022] Pereira, Jairzinho Lopes (editor), Church-State Relations in Africa in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Mission, Empire, and the Holy See (Cambridge Imperial and Postcolonial Studies), London, Palgrave Macmillan, 2022.
[2020] Pereira, Jairzinho Lopes, “The Roman Catholic Missionaries’ Attitudes Towards Slavery in the Archipelago of Cape Verde (Sixteenth and Seventeenth Centuries)”, Revue d’Histoire Ecclésiastique 115/1-2 (2020), pp. 58-87.
[2020] “King Leopold II’s Last Laugh: The Evolution of Mgr. Augouard’s Attitudes Towards the Congo Free State (1890-1908)”, The Catholic Historical Review 105/4 (2020), pp. 673-706.
[2019] “The Catholic Church and the Early Stages of King Leopold II’s Colonial Projects in the Congo (1876–1886)” Social Sciences and Missions 32 (2019), pp. 1-23.
[2017] “A Igreja e a Escravatura em Cabo Verde (séculos XVI-XVII)”, Africana Studia, vol. 26 (2017), 75-92.
[2016] “The Roman Catholic Church and Slavery in José Evaristo d’Almeida’s O Escravo (The Slave)”, Dialog: a Journal of Theology vol. 55/3 (2016), pp. 239-246.
[2016] “The Council of Trent and the Residence of Bishops in the Diocese of Cape Verde (1553–1705)”, Journal of Early Modern Christianity, 3/1 (2016), pp. 47-70.
[2014] “Theorizing the EU Conditionality Policy and its application in West African Countries. The case of Cape Verde”, European Scientific Journal vol. 10, Especial Edition, May 2014, pp. 389-403
[2013] Augustine of Hippo and Martin Luther on Original Sin and Justification of the Sinner (Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 2013).
[2007] “Morieris si peccaveris: O pecado e a morte no cogito augustiniano” Estudos, Nova Série, vols. 8-9 (2007), Coimbra, pp. 85-115;
[2006], “Propter peccatum originalem: o pecado original e a natureza humana em Agostinho e Lutero. Breves considerações”. Estudos Nova Série, vol. 6 (2006), pp. 181-208;
[2005] “A Unidade da Igreja, o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso à Luz do Concílio Vaticano II”, Estudos Nova Série vol. 5 (2005), Coimbra, pp. 93-120;
[2005] “O Dogma da Infalibilidade Pontíficia à luz da Revista Echo de Roma”, Estudos Nova Série vol. 3 (2005), Coimbra, pp. 457-478.
Capítulos de livros
[2025] “‘For Want of a Portuguese Soul’: Loyalty/Disloyalty Narratives in the Context of the Missionary Work of American Methodists in Northern Angola in the Early 1960s” in, Transloyalties, Connected Histories and World Christianity during the Period of Decolonization and the Cold War: 1945-1970, edited by Ellen Vea Rosnes, Joar Haga, Jairzinho Lopes Pereira, Frieder Ludwig, Marina Wang, New York, Routledge, 2025, pp. 123-141
[2022] “Introduction: The Shifting Contexts of Church-State Relations in the European Colonies (Nineteenth to Twentieth Centuries)” in Church-State Relations in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Mission, Empire, and the Holy See, edited by Jairzinho Lopes Pereira (Cambridge Imperial and Postcolonial Study Series), London, Palgrave, 2022, pp. 1-17.
[2022] “Slavery and Other Atrocities in the Relations Between the Catholic Church and the Congo Free State (1889-1908)” in Church-State Relations in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Mission, Empire, and the Holy See, edited by Jairzinho Lopes Pereira (Cambridge Imperial and Postcolonial Study Series), London, Palgrave, 2022, pp. 59-91.
[2022] “Final Remarks in Pereira”, in Church-State Relations in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Mission, Empire, and the Holy See, edited by Jairzinho Lopes Pereira (Cambridge Imperial and Postcolonial Study Series), London, Palgrave, 2022, pp. 217-220.
[2022] Pereira, Jairzinho Lopes and Santos, Matilde, “‘Regrar a clerezia’: as iniciativas do episcopado na Diocese de Cabo Verde (1675-1705)”, in George de Souza et. al. (organizadores), Impérios coloniais da Era Moderna. rupturas e continuidades, Universidade Federal do Pernambuco, 2022, pp. 527-542.
[2018] “Cardinal Dechamps’ Defense of Church and Papal Infallibility” in Louvain, Belgium and Beyond. Studies in Relgious History in Honour of Leo Kenis, edited by Mathijs Lamberigts and Ward de Pril (Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium 299), Leuven, Peeters, 2018 pp. 483-498.
[2017] “Ottoman Empire” in Encyclopedia of Martin Luther and the Reformation, edited by Mark Lamport, Rowman & Littlefield Publishers, 2017, pp. 585-587.
[2017] “Political/State Authority” in Encyclopedia of Martin Luther and the Reformation, edited by Mark Lamport, Rowman & Littlefield Publishers, 2017, pp. 619-621.
[2017] “Portugal”, in Encyclopedia of Martin Luther and the Reformation, edited by Mark Lamport, Rowman & Littlefield Publishers, 2017, pp. 621-623.
[2017] “War”, in Lamport, Encyclopedia of Martin Luther and the Reformation, edited by Mark Lamport, Rowman & Littlefield Publishers, 2017, pp. 817-820.
Textos académicos publicados que não passaram pela revisão de pares
[2021] Prefácio do romance Chiquinho (a primeira edição apareceu em 1947) do romancista cabo-verdiano Baltasar Lopes. Veja-se a edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde, Praia 2021, pp. 9-15.
[2025] “O escravo de José Evaristo de Almeida: no encalço de um romance disruptivo” – trata-se de um prefácio ensaístico à edição do romance O escravo do escritor português José Evaristo de Almeida (século XIX), editado, em junho de 2025, pela Biblioteca Nacional de Cabo Verde, pp. 11-50
Obras literárias
[2025] Auréllius Áridus (nome literário de Jairzinho Lopes Pereira), Ao pé da montanha, mandam as palavras, Coimbra, Tombalivros/Editora d’ideias, 2025.
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