"Nos casos do SOFA, Alex Saab e Amadeu Oliveira o Tribunal Constitucional demonstrou tendência pró-poder"
Entrevista

"Nos casos do SOFA, Alex Saab e Amadeu Oliveira o Tribunal Constitucional demonstrou tendência pró-poder"

O analista político José António dos Reis considera que o Tribunal Constitucional, ao longo dos dez anos de sua criação, teve actuação positiva, com certos acórdãos de elevado nivel. Mas, nesta curta entrevista ao Santiago Magazine, assinala, pelo contrário, que o acórdão sobre o caso Amadeu Oliveira, que instituiu no ordenamento jurídico cabo-verdiano os “costumes constitucionais contra a constituição”, foi das intervenções mais infelizes do Tribunal Constitucional. Defende o aumento de juízes conselheiros para melhorar o desempenho do TC. "Uma combinação ótima entre uma quota de magistrados e outra de académicos seria o desejável".

Santiago Magazine: Volvidos 10 anos sobre a criação do Tribunal Constitucional, que avaliação faz do seu desempenho?

José António Reis: No computo geral, o Tribunal Constitucional teve uma atuação positiva, justificando, em grande medida, a sua criação, e colocando-se, por mérito próprio, como uma das instâncias jurisdicionais mais relevantes do país. 

Ao longo destes 10 anos da sua existência o Tribunal Constitucional de Cabo Verde decidiu cerca de 750 processos, o que dá uma média 75 processos concluídos por ano o que não de ser um desempenho notável.

Há também que destacar a qualidade dos seus acórdãos proferidos, que uma maneira geral, esteve a um nível elevado.

O antigo juiz presidente do STJ, Raul Varela, disse numa entrevista ao extinto AVoz que o TC foi criado para servir "os endinheirados" e protelar decisões. Parece que assistimos uma outra vertente: contradizer a própria jurisprudência.

Era conhecida a sua posição contrária a criação de um Tribunal Constitucional em Cabo Verde que, no seu entender, só servia para protelar decisões.

Mas a prática veio demonstrar a utilidade de se ter um Tribunal Constitucional num Estado Constitucional como o nosso.

Para além de se ter uma instância especializada para dirimir questões de natureza constitucional, a sua criação permitiu descongestionar o Supremo Tribunal de Justiça que tinha também essa incumbência, a de tratar de matérias de constitucionalidades.

Com relação à questão do Tribunal Constitucional se contradizer a sua própria jurisprudência, creio tratar-se de um caso isolado, e que infelizmente manchou um pouco a sua reputação. 

Especificamente o que lhe suscita o acórdão do TC sobre o processo do Amadeu Oliveira e que ainda não disse?

O acórdão sobre o caso Amadeu Oliveira que instituiu no ordenamento jurídico cabo-verdiano os “costumes constitucionais contra a constituição”, foi das intervenções mais infelizes do Tribunal Constitucional, tendo em conta que a existência desse órgão jurisdicional se justifica pela sua tarefa principal que é a de proteger a constituição e não permitir que ela seja violada.

Os poderes outorgados pela Constituição ao Tribunal Constitucional para proceder à fiscalização da constitucionalidade e legalidade só podem ser exercidos nos termos da constituição, não tendo a constituição, por conseguinte, deixado espaço e nem bases que pudessem habilitar o Tribunal Constitucional a agir fora ou contra a Constituição.

Outrossim, o Tribunal Constitucional ao tentar justificar o costume constitucional contra a constituição na prática da Comissão Permanente deixa transparecer  alguns vícios argumentativos:

a) em primeiro lugar, a prática da Comissão Permanente de se reunir nos intervalos das sessões, até revisão constitucional de 2010, era constitucional, e logo não pode ser contabilizado como “prática reiterada” contra a constituição para justificar a existência de costume constitucional contra a constituição. Portanto, o argumento dos 22 anos é falacioso;

b) em segundo lugar, o facto de cerca de 21% de deputados terem questionado a prática da Comissão Permanente, constituído por 8 membros, como inconstitucional suscita a dúvida razoável de não aceitação generalizada por parte dos parlamentares de tal exercício, situação que deveria requerer do Tribunal Constitucional a necessária ponderação na análise do pedido de fiscalização da constitucionalidade desses deputados requerentes. O argumento do Tribunal Constitucional de não “conhecimento de qualquer discordância” é também falacioso, bastaria apenas que se detivesse sobre o pedido de fiscalização da constitucionalidade dos 21% dos deputados, partindo do princípio de que o costume não pode e não deve ser imposto;

c) em terceiro, o Tribunal Constitucional não poderia ignorar a rutura com a prática, da Comissão Permanente se reunir nos intervalos das sessões, operada em 2010, com a revisão constitucional. O legislador constituinte, em nome do povo, legitimamente decidiu instituir um regime de funcionamento da Assembleia Nacional, completamente diverso do que acontecia antes, passando a Assembleia Nacional a reger-se sob um regime de funcionamento ininterrupto, tal como previsto no artigo 151º da Constituição da República. A decisão tomada pelos constituintes foi no sentido de que os dois órgãos não poderiam funcionar simultaneamente. A Comissão Permanente, enquanto órgão de substituição, só poderá funcionar quando o órgão efetivo não estiver a funcionar. Trata-se de uma regra comum aplicável a diversas modalidades e organizações: estando o efetivo em campo, o suplente não entra em jogo.

A fiscalização da constitucionalidade da Resolução 3/X/2021 que o Tribunal Constitucional decidiu proceder, não nos termos impostos pela constituição, mas, antes, nos termos e conforme à norma costumeira constitucional, exige uma explicação, qual não seja, o de saber: Qual foi o parâmetro de aferição para a validação da norma costumeira?

Ora, em sede da fiscalização da constitucionalidade num Estado Constitucional, o único parâmetro de aferição da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade é a constituição escrita.

No caso concreto, da fiscalização da Resolução 3/X/2021, o Tribunal Constitucional até parece contraditório na sua decisão: quando diz que a Resolução 3/X/2021 não é inconstitucional. O enunciado da não inconstitucionalidade só poderá ter, como parâmetro de aferição da constitucionalidade, a Constituição.

Só que a Constituição, nos termos do nº 1 do Artigo 277º, determina expressamente que sejam declarados inconstitucionais “as normas e resoluções de conteúdo normativo ou individual e concreto que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados” e logo: a constituição não admite normas que sejam contra as suas determinações ou contrários aos seus princípios.

Fica, no entanto, por esclarecer a formulação do Tribunal Constitucional quando diz que o ato normativo fiscalizado não é inconstitucional “por ser conforme a norma costumeira constitucional”. Essa formulação coloca de imediato a questão de se saber qual foi o parâmetro costumeiro utilizado para se aferir da sua conformidade às regras constitucionais costumeiras, se é que elas existam.

O rito de parametrização da conformidade constitucional é conhecido, é a constituição escrita,  o mesmo já não se poderá dizer em relação à conformidade com regras costumeiras.

Comunga da ideia de haver um TC amarrado a interesses políticos?

Não direi que haja um Tribunal Constitucional amarrado a interesses políticos. Há, no entanto, três casos mediáticos como os de SOFA, Alex Saad e Amadeu Oliveira em que demonstrou alguma tendência pró-poder.

Nos dois últimos casos, em que se verificaram prisões arbitrárias, em flagrante violações dos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional, enquanto garante da tutela jurisdicional desses direitos, pautou a sua atuação por “falta de comparência”, e isso é muito para um Estado que se quer de Direito.

O TC é, neste momento, uma instituição credível?

Claro que sim! Apesar de não ter sido feliz na decisão sobre os casos atrás referidos.

Que desafios para o TC?

O grande desafio que se coloca ao Tribunal Constitucional é, em parte, sobre o aumento do número de juízes, visando incrementar a pluralidade e aprofundar debates sobre questões constitucionais, parte outra, sobre aumento de número de juízes constitucionalistas no seu seio.

Uma combinação ótima entre uma quota de magistrados e outra de académicos seria o desejável.

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

    Comentários

    • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

    Comentar

    Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
    O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
    Inicie sessão ou registe-se para comentar.