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Lilica Boal, a última entrevista da ex-combatente. “Cabo Verde não parou e não vai parar”
Entrevista

Lilica Boal, a última entrevista da ex-combatente. “Cabo Verde não parou e não vai parar”

Foi deputada nacional entre 1976 e 1981 na Guiné-Bissau e entre 1986 e 1991, professora e ativista antifascista cabo-verdiana que lutou pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e contra a ditadura do Estado Novo, Maria da Luz Freire de Andrade, nascida no Tarrafal de Santiago em 1934 e mais conhecida como Lilica Boal, concedeu esta entrevista o ano passado à revista Cult onde contou sobre a sua vivência na Praia, as saudades da cidade doutrora e aponta as diferenças com outras cidades onde viveu.

Santiago Magazine – Quando foi a primeira vez que veio à Praia?

Lilica Boal – A primeira vez foi quando o Carmona veio visitar a Praia. Lembro-me da minha mãe muito preocupada com um casaco que eu deveria vestir porque chegava uma grande personalidade. Agora a data não me recordo, mas deveria ter uns 4 anos de idade. Convidaram as pessoas para virem, e meus pais foram convidados porque eram conhecidos no Tarrafal e a minha mãe quis trazer a filha. Eu fico a pensar no que devo dizer da Praia e esta Praia não tem nada a ver com a Praia da minha infância e adolescência.

Quando eu vinha a praia, ficava na casa de uns tios no Plateau, e a Praia estava reduzida ao Plateau, Fazenda e um ou outro bairro. Algumas lojas importantes aqui no Plateau: a Serbam, Celina Vasconcelos, a loja da Dona Menina na agora Avenida Amílcar Cabral... eram as lojas da Praia. Vínhamos a Praia, aos domingos íamos passear na praça. A Praia de hoje é uma cidade bonita, podemos dizer que é desenvolvida, com construções interessantes, com espaços para se sentar e comer, ouvir músicas, bons restaurantes, porque no passado praticamente não havia hotéis, restaurantes. E, perguntámos como a Praia chegou a isto? Não quero partidarizar pois não é valor de um partido ou doutro, mas para ser coerente com o que eu penso, esta Praia é uma grande que foi se desenvolvendo, petit a petit, pouco a pouco, cada um que vem dá o que pode, nem todos têm tudo, mas sempre há uma coisa que fica e são dessas pequeninas realizações de cada delegado de governo, presidente da câmara que foram fazendo para se chegar a isto.

A minha Praia é aquela cidade que se desenvolveu e evolui num quadro de um trabalho feito e programado para o desenvolvimento, para a formação e informação da população. Por exemplo, o trabalho que a OMCV fez para o desenvolvimento desta cidade foi extraordinária, com as mulheres para a alfabetização, informar sobre o papel das mulheres, saúde materno-infantil, tudo isso também fez a Praia. Por isso, penso que é um trabalho coletivo, de todos. Outro exemplo, são os artistas, que saíram detrás das cortinhas, como no teatro com as cortinas a apresentarem os atores. A construção da cidade, com as ruas, a avenidas. Esta Praia linda que atrai os turistas. E isto não é trabalho de A, B ou C, ou de um partido ou outro, foi um trabalho coletivo.

- Algum lugar na capital que recomendaria?

- Aqui na Quebra Canela temos restaurantes interessantes para pessoas interessadas em descobrir a Praia. Os bairros foram crescendo, veja o Palmarejo que foi crescendo e de que maneira, a Prainha. Quando os meus pais quiseram fazer uma casa para mim, o Boal escolheu aa Praínha e o meu pai disse, “mas naquele sítio de pastagem de animais? Que vou por a minha filha” e veja a Praínha é hoje o que é. Meu pai preferia o Plateau e minha mãe já tinha escolhido a rua inclusive. E hoje a Praínha é um bairro que todos gostariam de ter um pedaço de terreno. Um bairro que atrai turistas, pessoas... os restaurantes aqui na orla da Praínha e Quebra Canela vale a pena visitar. A cidade da Praia possui belezas que conquistamos com o esforço de muitos.

- Quando regressaram da Guiné-Bissau ficaram aqui na Praia porquê?

- Ficamos na Praia por razões de trabalho. Quando regressei da Guiné-Bissau fui nomeada Inspetora Geral da Educação e tinha que viver na Praia. A partir dessa função visitei todas as escolas do país, foi uma oportunidade de descobrir o meu país. E agora quando visitamos Cabo Verde não tem nada a ver com o que era antes, mesmo em termos de instalação. Tudo mudou. Fiquei aqui por razões de trabalho, mas quase todos os fins de semana ia a Tarrafal.

«Cabral nos dizia que depois da independência seria diferente, iriamos ver outras coisas porque ali só tínhamos um interesse a independência do nosso país e depois da independência verão muito outros centros de interesse»

- O facto de ter trabalhado com o setor da educação e logo com os professores, as famílias e os estudantes. Viu muita coisa. Como era viver nesta cidade?

- Era muito difícil, muita miséria. Tenho de comprara com as coisas que vi e vivi. Lembro-me uma vez, vinda à Praia com meu pai ele disse “hoje já não se vê pessoas descalças” e para ele era uma grande melhoria que a independência tinha trazido. As pessoas mudaram de estilo de vida, de postura na sociedade, sem falar das escolas. Tudo mudou. Estudei até a 4ª classe no Tarrafal e vinham crianças de outros concelhos vizinhas para realizarem o exame. Agora, quando vou a Tarrafal, e de manhã à varanda vejo as meninas a irem para a escola, com uniforme, e indo ao liceu. Dantes não havia liceu em Santiago. Eu para estudar tive que ir para São Vicente. Hoje, há liceus em todos os municípios e várias universidades. Para mim isto é o máximo. Mesmo o Cabral só foi para a universidade porque era um aluno extraordinário. Muitos outros só foram porque os pais tinhas possibilidades de pagar para frequentarem uma universidade.

Este Cabo Verde de hoje não tem nada a ver com aquele que conhecemos na década de 40 e 50. A situação da saúde, não havia instalações sanitárias. As pessoas adoeciam e iam para casas de amigos para acederam aos cuidados hospitalares. Aconteceu de morrer na casa de amigos, na casa de meus pais, foram a Tarrafal para a Enfermaria, mas não tinha condições e ficava na casa de amigos e morrendo... era uma situação complicada. A Praia é a nossa capital e, a meu ver, está a desempenhar muito bem o seu papel. Há dificuldades, há erros, quando estamos na plateia vemos as coisas de certa maneira. Mas, esta Praia é linda e não deve só deste Presidente, mas de todos os que passaram por aqui.

- A entrada e saída para outras ilhas e países era de barco. Lembra deste frenesim do Porto da Praia?

- O porto era ali na frente da Electra. Lembro que o Boal veio de férias a Cabo Verde, fomos buscá-lo ao porto e fomos ao Tarrafal num carro de caixa aberta e ele foi atrás e lembro-me de ele achar engraçado os recados que as pessoas davam aos condutores “quando chegar a tal zona, diz ao fulano que fulana pariu uma menina”. Era um meio de comunicação, até um carro que passa leva mensagens. Saímos do Tarrafal e sem certeza de que chegávamos a Praia, acidentes... lembro de uma tia que trouxe um sobrinho para vir conhecer a Praia e houve um acidente e ele morreu. Tudo isso são recordações que te marcam. Hoje, ainda temos acidentes nas estradas, mas por outras razões e não porque as estradas são intransitáveis. As estradas mudaram, os meios de comunicação mudaram. Cabo Verde deu um salto. Ganhamos muito com a formação de quadros.

Durante a luta conseguiu-se muita solidariedade com os países europeus, americanos e africanos e era um grande respeito pelo PAIGC e por Cabral. Tínhamos bolsas de estudos quase que incondicionalmente, então muitos quadros nossos se formaram no quadro dessa caminhada e foram oportunidades que o país alcançou. O país não parou e não vai parar. Cabral nos dizia que depois da independência seria diferente, iriamos ver outras coisas porque ali só tínhamos um interesse a independência do nosso país e depois da independência verão muito outros centros de interesse.

- O que acha das pessoas que não são da Praia, mas escolheram viver aqui?

- Um exemplo, os imigrantes que chegam cá e ficam estupefactos com esta Praia. Temos parentes que viveram no estrangeiro e depois da reforma estão a fixar-se aqui na cidade, sensibilizaram os filhos a voltar à raiz para comprar casas. É interessante trazer os jovens ao país.

- O que acha que a Praia enquanto capital precisa?

- É preciso apoiar as microempresas e os jovens que estão a trabalhar, apoiar os jovens a se integrarem no mercado de trabalho. É preciso dar aos jovens a possibilidade de terem uma vida independente. As várias possibilidades desenvolvidas na capital na arte, na culinária, ... é preciso prevenir outros desvios como a violência ou drogas e por falta de uma família para os apoiar.

- Foi um membro ativo da OMCV e do trabalho desenvolvido?

- Fui uma das fundadoras, depois do golpe de estado em 1980, vim para Cabo Verde. Nesse período foi criado a OMCV. A OMCV fez um trabalho extraordinário, a sua primeira diretora, a Dory, trouxe toda a bagagem da luta com a aprendizagem do trabalho com as crianças, com os direitos das mulheres. Cabral até dizia “não sou eu que vou lutar por vocês, a mulheres têm que lutar para conquistar o seu lugar, o seu espaço”. Se fez um grande trabalho em todo o país. Houve resistências dos homens, principalmente, pois as mulheres em vez de fazerem o jantar iam para as aulas da alfabetização. As mulheres entenderam a importância da alfabetização e sua contribuição para o país e o seu direito à escolha.

- Já viveu em vários países e várias cidades: Mangui, Mindelo, Lisboa, Coimbra, Dakar, Conacri, Bissau. O que a Praia diferencia dessas cidades?

- É diferente. Vejo que aqui muitas vezes não estamos satisfeitos, queremos sempre mais e melhor em termos comportamentais. A cultura é muito diferente, a música, a moda, a comida. As cidades são diferentes. Mas, penso que temos melhorado e a Praia tem-se tornando cada vez mais cosmopolita. Eu gosto da Praia. Eu vi a Praia crescer. Tem-se tornado uma grande cidade, bonita, alegre, acolhedora para quem chega de fora. Essa morabeza faz parte da Praia e da nossa maneira de ser. Nestas cidades, no quadro da luta pela libertação, conheci pessoas e principalmente mulheres extraordinárias e valentes que representaram os seus países em vários órgãos nacionais e internacionais. São mulheres de valor e que tiveram um papel extraordinário na luta pelos direitos das mulheres. Essas mulheres me lembraram a minha mãe e tias que poderiam ter estudado pois os pais tinham meios, mas que não tiveram essa oportunidade de aprender, viajar e transformar o mundo. Muitas nem sequer conheciam a Praia. Vir à Praia era um evento.

(Entrevista publicada pela revista Cult - Agenda Cultural da Praia, em Janeiro de 2023, e conduzida pela socióloga Carla Carvalho, como parte de uma trabalho maior sobre a ex-combatente da liberdade da Pátria).

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