...a verdade é que a democracia tem também contribuído para o crescimento notório da pobreza e da desigualdade social em Cabo Verde, a níveis incompreensíveis e até vergonhosos face às expetativas do “homem livre” dos anos 1990. As casas de lata em São Vicente, os bairros informais e as situações de miséria em que muitas famílias vivem são compatíveis com uma democracia que se proclama “exemplo” no mundo e digna de um monumento de milhões?
“Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia”, Nelson Mandela.
De entre as suas várias músicas e letras sonantes, que retratam a realidade vivida do seu tempo e do seu país, a África do Sul, Lucky Philip Dube compôs e cantou Well Fed Slave/Hungry Free Man, tocando no coração ferido e sanguíneo da democracia sul-africana ao questionar os seus conterrâneos: “Do you wanna be a well fed slave or a hungry free man?” (Preferem ser escravos bem alimentados ou homens famintos e livres?).
Se a escravatura, enquanto prática social e sistema económico, permitia ao escravo receber a sua ração, na medida suficiente para o manter de pé e em condições de continuar a gerar rendimentos para o proprietário, em democracia, a “escravatura democrática”, enquanto praxis política imposta pelo capitalismo selvagem que hoje domina o mundo, oferece ao homem livre a liberdade de escolha e de decisão sobre o que fazer com a sua força de trabalho, onde e para quem a vender. Por um lado, ele pode vendê-la algures a troco de alguns trocos e utilizá-los, eventualmente, para adquirir víveres ou até gastá-los noutras coisas. Por outro lado, pode decidir (paradoxalmente, muitas vezes em circunstâncias forçadas) não vender a sua força de trabalho, permanecendo nos armazéns da reserva laboral, dependente da magra benevolência de um Estado providente, mas atrofiado e capturado pela mão invisível de uns poucos protegidos gatos gordos do sistema. Este paradoxo é parte da ilusão da liberdade de escolha na democracia eleitoralista.
Olhando para a democracia cabo-verdiana, que tudo indica será homenageada com a edificação de um monumento que custará milhões, quão ilusória tem sido para o exercício da liberdade e para o bem-estar geral dos cabo-verdianos? Cabo Verde, ainda durante o período do partido único, foi descrito por Colm Foy, em 1988, como uma democracia, não eleitoralista, obviamente, em que o partido centralizador dava oportunidades às bases para exprimirem com autenticidade e coragem as suas opiniões e desejos sobre assuntos que deviam dar forma e conteúdo às políticas e aos projetos de desenvolvimento. O regime permitia uma certa dose de democracia participativa no processo político, o que contribuiu para que Cabo Verde passasse de um Estado “inviável”, em 1975, para um Estado possível e capaz de imprimir novas reformas às suas próprias instituições no início dos anos 90?.
Colm Foy foi suficientemente astuto ao ponto de antever que a não criação de espaços, nas estruturas do partido-Estado, para acomodar todas as dissonâncias sociais — mormente as das elites desintegradas e insatisfeitas com o sistema — colocava sérios riscos à perenidade do regime. Foi exatamente o que parece ter acontecido com a queda do monopartidarismo e a transição para a democracia eleitoralista em 1990. A liberdade conseguida com essa transição transformou-se, entretanto, numa espécie de “Fim da História”, moldando o “homem livre” cabo-verdiano numa estirpe do “último homem” (Francis Fukuyama, 1992), que, no auge da sua História, deixou de ter motivos para continuar a lutar e “dar sangue” por qualquer causa, porque a causa maior — a liberdade — já estava ganha.
Cabo Verde terá certamente evoluído muito desde 1990 até hoje, com o PIB per capita — um proxy do bem-estar da população — a crescer de 817,44 USD em 1990 para 4.451 USD em 2024 (BCV, Relatório do Estado da Economia, 2025), tendo várias infraestruturas económicas e sociais sido edificadas ao longo dos anos, fruto da cooperação internacional, mas também do esforço nacional. O crescimento económico é atribuído às medidas pró-mercado adotadas nos anos 90, e que tiveram continuidade e consolidadas posteriormente, mesmo com um partido de matriz socialista no poder, o PAICV, de 2001 a 2016.
Não é o propósito deste texto discutir a relevância do PIB per capita enquanto indicador do bem-estar da população cabo-verdiana, mas o certo é que, apesar desse crescimento, Cabo Verde continua a deparar-se com níveis de pobreza elevados, estimados em 24,75% da população em 2023, com base na linha de pobreza de 2,15 USD por dia, e não 3,20 USD — o valor indicado para os países de rendimento médio-baixo. E se essa linha for estabelecida em 8,30 USD, como estipula o Banco Mundial para os países de rendimento médio-alto (estatuto que Cabo Verde adquiriu em 1 de julho de 2025), quantos pobres existiriam hoje no país?
Apesar dos ganhos coletivos e individuais conseguidos, a verdade é que a democracia tem também contribuído para o crescimento notório da pobreza e da desigualdade social em Cabo Verde, a níveis incompreensíveis e até vergonhosos face às expetativas do “homem livre” dos anos 1990. As casas de lata em São Vicente, os bairros informais e as situações de miséria em que muitas famílias vivem são compatíveis com uma democracia que se proclama “exemplo” no mundo e digna de um monumento de milhões?
O “homem livre” e a massa populacional pobre certamente não estariam interessados, nem aceitariam, em condições normais, uma restrição da sua liberdade a troco de uma hipotética melhoria das condições de vida. É o dilema cantado por Lucky Dube: preferes ser um escravo bem alimentado (um cidadão saciado, mas politicamente oprimido) ou um faminto livre (um cidadão politicamente livre, mas condenado à miséria pela injustiça económica e social)? Muitos dizem: “A minha liberdade é inegociável.” Pois, é exatamente na inalienabilidade e inegociabilidade da liberdade que reside a ilusão cruel da democracia eleitoralista: a liberdade de escolher o governante. Uma vez feita a escolha, eu, o governante escolhido, também sou livre para decidir o que fazer, como governar, quem beneficiar, quem promover e despromover, a quem ajudar e a quem negar auxílio, inclusive mantendo alguns — até mesmo alguns que me escolheram — eternamente mergulhados na miséria.
Os moradores dos bairros de lata em São Vicente, ou dos bairros informais na Praia, no Sal e na Boa Vista, bem como as famílias que padecem em silêncio nos cantos recônditos das ilhas, sabem e sentem na pele o que é ser vítima das escolhas políticas dos seus governantes — e, paradoxalmente, das suas próprias escolhas, enquanto eleitores. E o governante eleito continua: “Eu tenho até a liberdade de dar-te porrada, se me perturbares enquanto faço as minhas próprias escolhas sobre como usar o poder que me delegaste.” Ironia da democracia: o soberano é chicoteado pelo seu próprio representante. Se alguém duvida dessa liberdade que goza o governante para castigar quem reclama de forma ruidosa, basta perguntar aos manifestantes que tentam protestar em frente ao Palácio do Governo ou à Assembleia Nacional, quantas vezes são empurrados à bastonada para longe desses edifícios, para não perturbarem os decisores que lá dentro fazem as suas escolhas.
É esta a democracia que empobrece muitos, castiga quem reclama, atrofia o Estado e o instrumentaliza para benefício de uns poucos, que se quer celebrar com a edificação de um monumento de milhões de escudos cabo-verdianos, paradoxalmente financiados pelo próprio “homem livre” cabo-verdiano, vítima sofredora das escolhas injustas a que é sujeito a aceitar, livremente.
É esse homem livre que aceita, passivamente, viver em casas de lata nas ribeiras ou em bairros ditos “clandestinos”, mas que nascem e crescem à luz do dia e à vista de todos (pois até é permitido ao “homem livre” ser clandestino na sua própria cidade e no seu próprio país), enquanto um outro homem livre, o seu vizinho, desfruta de uma vida de luxo em vivendas cercadas por muros e arame farpado, ou em resorts recônditos ao longo das costas paradisíacas das ilhas crioulas.
É esse homem livre que aceita morrer — ou ver morrer os seus familiares — em hospitais desfalcados de condições e de cuidados, enquanto assiste ao vizinho afortunado viajar de avião para se tratar na Europa ou na América. É esse homem livre que aceita, com sorrisos, as escolas que tem, a segurança que tem, as ruas esburacadas e enlameadas que é obrigado a percorrer quando chove, o salário que mal lhe permite satisfazer as suas necessidades básicas, enquanto outros homens livres compram ensino privado, segurança privada, habitam em bairros asfaltados e desfrutam de salários milionários, que até lhes sobram para viagens regulares, festas privadas caríssimas, BMWs e BENZs com todos os extras.
E o que resta ao homem livre além de aceitar livremente esses paradoxos da democracia? Afinal, os afortunados também são homens livres e têm toda a liberdade de usufruir da fortuna que a democracia lhes proporciona.
Enfim, são esses homens livres, de um lado e do outro, que são chamados a celebrar e dançar a Liberdade e a Democracia, e, em sua causa, erguer um monumento de milhões. Uns, os vencedores, cantam e gritam o seu triunfo. Outros, os perdedores, aos berros, lamentam o seu desencanto com essa liberdade e democracia omissas e incumpridoras da promessa de uma vida melhor. Entretanto, todos, sob o mar azul e de olhos voltados para o céu, entre encantos e desencantos, vislumbram o monumento da ilusão democrática.
Fica a pergunta: o momento é de celebrar ou de lamentar a democracia?
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A equipa do Santiago Magazine