Calhou em sorte estar a banhos quando me tocou por acaso um texto informativo de F. Pratas, publicado no jornal Buala, em meados de agosto (Ortografia do caboverdiano: ciência, identidade, e respeito pela diversidade) em que, de passagem, e de forma implícita, se tenta enxovalhar o meu nome, junto com os do Grupo de membros da Comissão Científica da ALMA-CV em Portugal (CC) que apresentou um parecer sobre o Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana do 10º ano. (Falaram-me de uma entrevista posterior, na Inforpress, no mesmo teor acusatório, ofensivo e grosseiro, cuja leitura remeti para mais tarde).
E digo calhou em sorte, pamodi mar ta laba tudu. Ti alma!
F. Pratas, num discurso de tal maneira empolado que roça a histeria, qual D. Quixote, avança contra moinhos de vento na defesa da sua dama, o referido Manual, chamando a si as dores de quem demonstra, com razoabilidade, não as ter.
Estranho seria que, sobretudo numa fase experimental, as autoras e avaliadoras externas do Manual (que nele também participaram) se recusassem a escutar e a debater avaliações críticas e sugestões, particularmente se resultantes de uma análise cuidada e séria, feita por membros, alguns honorários, como eu, de uma Associação que, não sendo de linguística nem para linguistas, se dedica ao estudo, promoção e valorização da língua cabo-verdiana. O próprio Ministro da Educação, numa intervenção televisiva, se afirmou aberto a observações e críticas científicas.
Ao contrário do que afirma Pratas, nada foi feito à revelia de ninguém. Logo no dia da apresentação da norma de escrita pandialetal inserta no Manual, no Fórun di Língua Matérnu Kabuverdianu (15 de fev. de 2025), fiz saber das minhas preocupações, nomeadamente, quanto ao efeito, na leitura, de uma escrita que, por sistema, fazia depender o reconhecimento da forma das palavras do seu conhecimento prévio por parte dos falantes/alunos. Assim, uma palavra escrita aton (como é grafada no Manual), por falta de uma vogal final, seria lida ‘atõ’, a menos que se soubesse a palavra portuguesa que lhe deu origem (‘átono/a’). O mesmo se pode dizer de jener para ‘género’. Isto é só um exemplo dos muitos, e de vários tipos, que já foram aduzidos.
Antes mesmo da constituição do Grupo de reflexão aberto a todos os membros da CC que nele quisessem participar, enviei às autoras e avaliadoras, em 11 de março e 3 de abril, um extenso texto de análise crítica, devidamente fundamentada, do Manual, tendo estas agradecido, e cito, “os comentários, muito especialmente pela postura contributiva para a sua melhoria no final da experimentação”.
Esse texto incidia sobre questões de vária ordem, nomeadamente, quanto ao modelo de manual, que dá maior relevo a questões de linguística geral e cabo-verdiana do que ao conhecimento aprofundado das estruturas da língua e do seu léxico; à variedade de crioulo usada pelas autoras, demasiado leve (acroletal) e altamente dependente da sintaxe e do léxico do português; ao acento dado às variedades insulares em detrimento das variedades sociais, estilísticas e regionais, dentro de cada ilha; às abordagens e descrições gramaticais nem sempre corretas; à proposta, no âmbito de um manual, de uma norma de escrita, mesmo que experimental, ao próprio teor dessa norma, etc.
Posteriormente, em 22 de maio, o referido Grupo, a que pertenço, promoveu uma sessão pública, aberta a todos os interessados, sobre "Língua Materna no Sistema de Ensino em Cabo Verde e o Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana do 10ºano”, onde apresentou o trabalho em curso, sujeitando-o a contraditório. F. Pratas esteve presente on-line, sem nunca se manifestar, nem contribuir, com a sua putativa visão antagónica e “científica”, para o debate.
É que F. Pratas não quer debater, no verdadeiro sentido da palavra, porque acha que já sabe tudo. Porque brinca ao toca e foge, como se a ciência servisse para vomitar impropérios e não para criar conhecimento.
F. Pratas “sabe tudo”, mas não sabe nada.
Não sabe nada sobre a experiência e o rigor científico de quem há muitas décadas se dedica aos estudos linguísticos em geral e aos estudos crioulos em particular, bem como à análise do efeito do contacto entre o português e o cabo-verdiano; aos problemas da normalização e instrumentalização das línguas crioulas, propondo inclusive uma grafia que veio a dar origem ao ALUPEC; ao ensino e à educação linguística em contextos multilingues envolvendo o cabo-verdiano e o português, produzindo materiais e testando metodologias inovadoras de biliteracia.
Não sabe nada de quem promoveu o desenvolvimento, a aprendizagem e o estudo da Língua cabo-verdiana em vários níveis educativos, criando, coordenando e acompanhando no terreno projetos, desde o jardim de infância e o ensino básico, à educação de adultos e ao ensino universitário, tendo, nomeadamente, coordenado a cadeira de Língua Cabo-verdiana do curso de Estudos Cabo-verdianos e Portugueses do Instituto Superior de Educação da Cidade da Praia; de quem foi muitos anos consultora editorial para a análise de manuais de língua materna e também nessa área produziu materiais didáticos; de quem formou centenas de professores de vários graus de ensino, inclusive orientando seminários para estagiários, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também introduziu a cadeira de Crioulos de Base Portuguesa; de quem escreveu e publicou sobre todas essas matérias (como Dulce Pereira e como Dulce Fanha).
Não sabe nada de quem estuda e continua a estudar e, com a mesma ânsia de aprender, relê os escritos linguísticos de Baltasar Lopes, Nho Balta (gosi ki dja ka pode xinta si dianti ta sukuta-l, na Kalhau), ao mesmo tempo que lê e cita ─ se a propósito ─ M.-C. Hazaël-Massieux (1993), Blakemore & Frith (2005), S. Canù (2009), F. Lüpke (2011), K. Decker, (2014), M. Sebbat (2007, 2016), Tomlinson & Masuhara, (2018), A. Bartens (2005, 2020), B. Migge (2021), Ayres-Bennett & Bellamy (2021), García & Cervantes-Soon (2023), entre outros, na busca por mais conhecimento sobre o estado da arte em várias áreas do saber que importam, neste caso, para a avaliação de manuais de língua materna ou para a definição de modelos de ensino e de grafias e ortografias em contextos sociolinguísticos e políticos como o de Cabo Verde.
F. Pratas pensa que sabe avaliar o trabalho dos outros melhor que instituições como (para citar só algumas) a Cooperação Suíça para o Desenvolvimento, que financiou o Projeto Piloto de Alfabetização Bilingue em Cabo Verde, ou a Fundação Calouste Gulbenkian, que apoiou os quatro projetos em que participei como autora, coordenadora ou consultora (como o Projeto, que coordenei, Turma Bilingue (Português-Cabo-verdiano), em Portugal) ou o Instituto de Linguística Teórica e Computacional, ou a Associação de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola, de que fui membro fundador, ou a ALMA-CV, ou o próprio Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, que, em 2010, me atribuiu uma condecoração que procuro honrar, incentivando e acompanhando, nomeadamente, os processos conducentes à introdução da língua cabo-verdiana no sistema de ensino.
Mas, pior ainda, F. Pratas não sabe em que consiste, realmente, o Manual que defende porque, na melhor das hipóteses, não o leu.
E digo na melhor das hipóteses, porque mal seria que, lendo-o, enquanto linguista, não tivesse ela própria produzido um parecer contrariando as graves falhas de carácter linguístico que nele se encontram e que eu, dada a extensão, só em parte assinalei.
Fi-lo eu e também o Grupo que elaborou e apresentou publicamente o mencionado Parecer. E, pelos vistos, as análises críticas que Pratas considera “opiniões pseudocientíficas” tiveram foros de cientificidade bastante para que as autoras, embora sem qualquer aviso, menção ou agradecimento, as usassem para corrigir o Manual e elaborar uma nova versão, publicada on-line a 4 de julho.
Cotejando a versão inicial e a atual, vemos que, com essas correções, houve melhorias, embora ainda muito aquém do desejado. Assim, em vez da forma gráfica fala para representar ‘fla’, aparece agora, e bem, fla; o segmento em fim de palavra -iu, que tinha desaparecido, sem regra que o justificasse (inper, anuns, patris), é agora reposto, também sem justificação explícita (ainda que com inconsistências, como no caso de izersis); na descrição gramatical do sistema verbal, já não encontramos afirmações erróneas como Un verb d stad, sima ’sabe’, ka meste sta kunpanhad d ta pa indika un ason na prezent (p.113 da versão original ), em que se confunde estado com ação, para dar apenas um exemplo.
No entanto, mantêm-se muitos problemas gráficos e gramaticais, nas descrições da língua propostas aos alunos e na terminologia usada, que requerem atenção e reformulação, mas cuja explicação, pela sua especificidade e complexidade, não cabe neste texto (podendo vir a ser facultada noutro âmbito, como aconteceu com os comentários por mim enviados às autoras, em abril último).
É fundamental que se faça tudo para que o primeiro Manual oficial de língua materna em Cabo Verde seja exemplar, nos dois sentidos da palavra.
Por outro lado, na nova versão, surge ainda, e pela primeira vez, bibliografia justificativa das opções das autoras sobre a chamada norma de escrita pandialetal, para eventual consulta, simultaneamente, de professores e alunos do 10º ano: “Es proposta pandialetal ta permiti ten un norma d skrita d variedads d kabuverdian, na linha d kes rekumendason pa konstruson y unifikason ortografik propost pa Lupke (2019), Jones y Mooney (2017), Adel y Turki (2016) y ots.”, lê-se, na página 205 (sublinhado meu).
Ora a consulta atenta das três obras referidas vem demonstrar que citar bibliografia, ao contrário do que F. Pratas clama histrionicamente, nem sempre é sinal de cientificidade.
Assim, em Lüpke (2019), nada se encontra que diga respeito a normas de ortografia, como aliás se deduz a partir do título. Adel & Turk (2016) não passa de um escrito escolar (um dos autores, à data, era estudante de medicina), que propõe regras de uniformização da escrita de variedades do árabe da Tunísia, da Argélia e de Marrocos, para “facilitar a leitura por parte de estrangeiros”. Jones & Mooney (2017), sendo o artigo mais relevante, reflete sobre as várias opções de normalização da escrita e suas implicações, mas referindo-se a contextos de línguas em perigo ou em vias de extinção, o que está longe de ser o caso do cabo-verdiano.
Sejamos sérios (e éticos).
Falando de citações, que Pratas tanto apregoa e nunca faz nas suas críticas, citemo-la, na sua entrevista à Inforpress (de 19 de agosto último):
“Quando vamos ler obras sérias, pode usar “séria” por oposição ao que elas (sic) fizeram, quando vamos ler obras sérias sobre ortografia, esta questão da transparência [do sistema ortográfico] é logo posta de parte”.
E, logo a seguir, faz a muito informativa constatação de que há línguas, como o Francês e o Inglês, que não são transparentes na sua ortografia, como argumento para recusar que se opte, para a Língua cabo-verdiana, por uma ortografia mais regular, com menos exceções, e mais transparente na relação som/grafema, como elas (forma inovadora de incluir as quatro mulheres e um homem que fizeram o Parecer) defendem, em nome de uma maior facilidade e rapidez de aprendizagem e de automatização e fluência de leitura, sobretudo nas primeiras fases.
Repito: sejamos sérios.
Não sei quais são os pares, nem de que áreas do saber, que lhe dão respaldo para avançar tão alegremente por esta senda jornalística.
Mas talvez Pratas possa parar um pouco para tomar fôlego e ler uma ou outra referência bibliográfica (como a seguinte) que a devolvam ao caminho da ciência, sãmente falsificável, feita de confrontos teóricos, de hipóteses e reformulações.
Assim se lê em Borleffs, Maassen, Lyytinen & Zwarts (2019):
Theoretical considerations […] as well as empirical evidence […] suggest that transparent orthographies with highly regular grapheme-phoneme mappings are acquired more easily than opaque and complex orthographies with a high proportion of inconsistent and irregular spellings. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6328448/
[Várias] considerações teóricas [...] bem como evidências empíricas [...] sugerem que ortografias transparentes, com um elevado grau de regularidade na relação grafema-fonema, são adquiridas mais facilmente do que ortografias opacas e complexas com uma grande proporção de representações gráficas inconsistentes e irregulares (tradução minha).
E, já agora, na entrevista da Inforpress, diz-se que Pratas questionou a proposta “de criar versões bidialetais do manual, o que implicaria a aceitação de duas normas ortográficas distintas para o arquipélago. “Vamos assumir que há duas línguas diferentes em Cabo Verde? Portanto, vão assumir que vamos ter tudo isso separado. Vamos no Barlavento escrever de uma maneira e no Sotavento escrever da outra e assumir que são duas línguas diferentes. É isto?”, indagou [ela].”
Não, F. Pratas, não vamos assumir que são duas línguas diferentes, porque não estamos a falar de bilinguismo, nem de educação bilingue (e também devíamos…), mas de bigrafia, num contexto de educação pluridialetal e de competência poliletal de uma grande parte dos falantes. Há muita bibliografia que problematiza, discute e legitima essa, entre outras opções, consoante os contextos sociais e linguísticos. E repetidamente afirma que, em última instância, sobretudo no que diz respeito a ortografias, as propostas dos investigadores são e devem ser sujeitas à vontade das comunidades linguísticas e dos seus representantes políticos.
Aqui fica, a propósito, mais uma citação (com outra dentro):
[…] considering the different needs of first language speakers and second language speakers and other factors of a historical and social nature, we will highlight the advantages of adopting a digraphic (or ‘bigraphic’ as Lüpke (2011, 316) suggests) system, at least at the initial stages of language planning.
(ênfase minha)
Coluzzi, Brasca & Miola (2018, 3) https://doi.org/10.1080/01434632.2018.1531875 […] considerando as diferentes necessidades dos falantes nativos e dos falantes de segunda língua, bem como outros fatores de natureza histórica e social, destacaremos as vantagens da adoção de um sistema digráfico (ou ‘bigráfico’ como sugere Lüpke (2011, 316)), pelo menos nas fases iniciais da planificação linguística (tradução minha).
Estamos, assim ─ definitivamente ─ conversadas. Ou, no dizer de Almada Negreiros, Pim!
Entretanto, continuarei ao serviço da língua cabo-verdiana (e, acima de tudo, dos seus falantes), promovendo, enquanto puder, o seu conhecimento e desenvolvimento, a legitimidade do seu uso em todos os contextos, nacionais e internacionais, o seu estatuto de língua oficial, o seu ensino, a sua escrita…
*Linguista, membro honorário da ALMA-CV
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