Exposição precoce à pornografia preocupa especialistas e famílias cabo-verdianas
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Exposição precoce à pornografia preocupa especialistas e famílias cabo-verdianas

A exposição precoce de crianças e adolescentes a conteúdos pornográficos suscita preocupação entre especialistas em saúde mental em Cabo Verde, que alertam para impactos emocionais, distorções sobre a sexualidade, ausência de diálogo familiar e de orientação escolar estruturada.

Apesar da inexistência de estatísticas nacionais que quantifiquem o primeiro contacto de crianças e adolescentes com estes conteúdos, o fenómeno não esconde uma realidade que especialistas consideram alarmante.

A Inforpress deslocou-se ao terreno para aprofundar a questão, ouvindo psicólogos, mães e professores, no esforço de compreender como a exposição precoce à pornografia está a moldar comportamentos, emoções e expectativas entre crianças e adolescentes.

A psicóloga e sexóloga Sandra Gonzalez alertou que, a nível global, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Unesco situam essa exposição inicial entre os 11 e os 13 anos.

Em Cabo Verde, realçou, apesar da ausência de estudos sistematizados, o contexto tecnológico e social não difere da tendência internacional, já que o acesso ao telemóvel e à Internet facilita contactos acidentais com conteúdos inapropriados e reduz a capacidade de mediação por parte das famílias.

Segundo Sandra Gonzalez, o fenómeno é agravado em sociedades conservadoras, onde falar sobre sexualidade continua a ser tabu.

“A ausência de diálogo dentro das famílias e a falta de orientação sistemática nas escolas fazem com que a Internet ocupe o papel de principal fonte de informação”, referiu à Inforpress.

“Quando a família e a escola não falam, a Internet fala. E fala de uma forma que não educa”, acrescentou.

A especialista explicou que, quando esse contacto ocorre antes dos 12 anos é considerado pela OMS um factor de risco directo para a saúde mental e emocional.

Referiu que a criança, sem maturidade cognitiva ou afectiva, interpreta o que vê de forma confusa.

“Isso pode gerar ansiedade, medo, vergonha, hipersexualização precoce ou dessensibilização. E mais tarde interfere no desenvolvimento da autoestima, da imagem corporal e no modo como entendem intimidade e consentimento”, frisou.

Outro impacto constatado em consultas de sexologia é a construção de expectativas irreais sobre o corpo e a performance sexual.

Sandra Gonzalez explicou à Inforpress que o consumo regular, ainda na adolescência, condiciona comportamentos que mais tarde se reflectem em dificuldades na vida íntima adulta, desde a ejaculação precoce ao desinteresse por estímulos reais.

“O cérebro acostuma-se à intensidade do estímulo pornográfico. Depois, a vida real não activa a mesma resposta”, observou a psicóloga.

Sandra Gonzalez pontuou que no campo das relações sociais e dos papéis de género, a pornografia surge como um elemento distorcedor.

O sentimento entre as mães entrevistadas é de crescente preocupação e incerteza sobre como abordar o tema. Carlita dos Santos, mãe de dois adolescentes, relatou ter descoberto o problema quando notou mudanças no comportamento do filho de 11 anos.

“Ele começou a fazer perguntas que não condizem com a idade e evitava abdicar-se do telemóvel. Quando descobri o histórico, fiquei sem chão. Senti que tinha falhado em orientá-lo”, contou a mãe.

Para a sexóloga, o caminho da prevenção passa por quatro pilares, diálogo aberto em casa, educação sexual nas escolas, supervisão digital realista e ambiente comunitário informativo.

“Não se trata de controlar tudo, mas de criar confiança. A criança precisa saber que pode conversar sem medo. E a comunidade, incluindo igreja e centros comunitários, deve informar sem moralismo, com foco na protecção e no desenvolvimento saudável”, evidenciou.

A construção deste ambiente de confiança, reforça Sandra Gonzalez, diminui o risco de a pornografia assumir o papel de “primeiro professor” da sexualidade.

No campo educativo, professores reforçam que a discussão sobre sexualidade ainda é insuficiente e que a escola permanece limitada na forma como enfrenta a realidade digital dos alunos.

O professor de Ciências Sociais Júlio Mendes disse que a ausência de programas estruturados deixa adolescentes vulneráveis e confusos.

“Os alunos chegam à escola com dúvidas que não sabem formular e com referências que não entendem. A escola tenta orientar, mas sem um currículo claro e sem formação específica para os docentes, acabamos sempre a correr atrás dos acontecimentos”, explicou.

Para o docente, “é urgente integrar educação sexual responsável no ensino básico, antes que a Internet consolide modelos distorcidos”.

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