
Tão-pouco, valerá a pena aprofundarmos muito (ficará para outra ocasião) o esquema de financiamento das campanhas eleitorais em Cabo Verde com o dinheiro sujo de Umaro Sissoco Embaló, com maior expressão nas eleições legislativas de abril de 2021 e nas autárquicas de dezembro de 2024. Ou, ainda, entrar em pormenores sobre malas de ministras guineenses com destino ao nosso país para custear o regabofe da compra de consciências. Um dia se contará a verdadeira história sobre as (aparentemente estranhas) relações promíscuas entre “democratas” da tapadinha e autoritários de todos os matizes, as mais das vezes por razões comestíveis…
A crise política na Guiné-Bissau é um divisor de águas que nos permite avaliar quem, de facto, está do lado da democracia e da liberdade. E corresponde, no plano interno da política cabo-verdiana, a um histórico de cumplicidades, senão mesmo de namoros declarados, com os autoritarismos no continente africano, tudo – claro está – mascarado com declarações altissonantes sobre valores liberais, boa governação, mais o raio que os parta a todos.
E a crise neste país irmão - a quem, historicamente, Cabo Verde tanto deve, pela generosidade, entrega à luta contra o colonialismo, pela independência e a dignidade dos dois povos, apesar de todos os desacertos e erros na caminhada colectiva - releva o cinismo na sua expressão mais exacerbada, expondo a política pelo seu lado mais degradante e interesseiro.
Em 23 de novembro, a Guiné-Bissau foi a eleições, consideradas livres, limpas e justas por todos os observadores internacionais, com uma impressionante afluência às urnas e um destacável espírito cívico e cidadão.
No entanto, três dias depois, um suposto golpe de Estado coloca os militares no poder, suspende o apuramento definitivo dos votos, anula a liberdade de imprensa e mete atrás das grades importantes figuras da oposição, sob o argumento de estar em marcha um golpe de Estado com apoio de barões do tráfico internacional de drogas.
Um golpe que não foi golpe
Aparentemente, até pelo anúncio de que o então presidente tinha também sido detido, tudo levaria a supor, pelo menos aos mais desavisados, que o golpe teria sido dado contra o próprio Umaro Sissoco Embaló, também conhecido por “Bolsonaro de África”. De todo o modo, menos de 24 horas após o levantamento militar, ficava claro quais as verdadeiras intenções da quartelada de Bissau, percebendo-se qual o rosto por detrás do golpe.
Neste particular, o ridículo assumiu foros de opereta de terceira categoria. Numa singular particularidade guineense, digna do Guinness Book, o presidente detido e suposto visado pelo golpe, contactou telefonicamente com chefes de Estado, deu entrevistas e agiu com a naturalidade de quem não tem qualquer impedimento à sua liberdade de movimentos.
Era evidente para toda a gente que o rosto por detrás da intentona era Sissoco e que, afinal, tratava-se de um golpe que não foi golpe. Ou melhor, foi a continuação dos reiterados golpes institucionais que o “Bolsonaro de África” já vinha promovendo desde 2019, altura em que tomou posse como presidente da República num hotel de Bissau, após umas eleições que foram contestadíssimas e manchadas pela suspeita de irregularidades.
Já nem valerá a pena, porque por demais conhecido, falar das vezes em que Sissoco dissolveu o parlamento, desrespeitando a vontade popular e violando a Constituição da República da Guiné-Bissau, ou, ainda, mais recentemente, quando decidiu prolongar o seu mandato e marcar eleições para além da data legal. Ou, ainda, inventando golpes de Estado que nunca existiram, para demitir primeiros-ministros por ele próprio nomeados, e perseguindo opositores políticos.
Namorando com o autoritarismo
Os sinais estavam lá todos, só não viu quem não quis ou lhe deu jeito. E nem valerá a pena, também, tecer considerações sobre a visita de Sissoco à cidade da Praia, logo a seguir às eleições de 2019 e sem ainda ter tomado posse, recebido com honras de Estado pelos responsáveis políticos cabo-verdianos. Ou, ainda, as razões que estiveram por detrás da condecoração, em 2021, do “Bolsonaro de África” com a mais elevada distinção do Estado de Cabo Verde, o primeiro grau da “Ordem Amílcar Cabral”, numa afronta à democracia e à memória do líder da luta de libertação nacional.
Há uma reiterada trajectória, em Cabo Verde, de namoro dos “democratas” com o autoritarismo no continente. Para não ir mais longe, sublinhe-se as relações de amizade com outro golpista - Macky Sall -, que tentou prolongar-se no poder através de um golpe institucional, o que lhe saiu muito caro e apressou o seu actual e voluntário exílio em Marrocos. Também o ex-presidente do Senegal era apresentado como um exemplo de democrata e reiteradamente designado como amigo pessoal de altas figuras do Estado de Cabo Verde.
Tão-pouco, valerá a pena aprofundarmos muito (ficará para outra ocasião) o esquema de financiamento das campanhas eleitorais em Cabo Verde com o dinheiro sujo de Umaro Sissoco Embaló, com maior expressão nas eleições legislativas de abril de 2021e nas autárquicas de dezembro de 2024. Ou, ainda, entrar em pormenores sobre malas de ministras guineenses com destino ao nosso país para custear o regabofe da compra de consciências.
Um dia se contará a verdadeira história sobre as (aparentemente estranhas) relações promíscuas entre “democratas” da tapadinha e autoritários de todos os matizes, as mais das vezes por razões comestíveis…
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Comentários
Aguinaldo Monteiro, 9 de Dez de 2025
A crise guineense não pode ser analisada isoladamente. Ela revela as tensões estruturais entre discursos normativos e práticas políticas na África Ocidental, expõe fragilidades institucionais persistentes e obriga a uma reflexão aprofundada sobre a postura dos países da sub-região.
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