
Num Estado de Direito democrático, nenhum poder está acima de ser escrutinado, muito menos quando a atuação institucional se cruza com responsabilidades políticas. O que a PGR parece querer evitar não é a interferência nos tribunais — que ninguém propõe — mas sim a exposição política das consequências, decisões e omissões relacionadas com o caso Amadeu Oliveira. E essa resistência é, só por si, reveladora. O que esperar? Que o Tribunal Constitucional aproveite a oportunidade para repor equilíbrio e clareza, reconhecendo que escrutínio político não interfere com decisões judiciais e reafirmando que a separação de poderes não é um muro, mas um sistema de equilíbrios. Porque nenhum órgão — incluindo o Ministério Público — pode impedir o Parlamento de exercer o seu mandato fiscalizador.
Harakiri, termo japonês para referir a suicídio ritual, ou morte por alternativa à execução, se assemelha à desajeitada postura da Procuradoria Geral da República quando, de forma estulta, pede ao Tribunal Constitucional que fiscalize a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar se Amadeu Oliveira cometeu crime de atentado ao Estado de Direito ao ajudar um seu constituinte a sair do país usando sua condição de eleito nacional.
Pois bem, a recente decisão da PGR, de solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta da resolução que criou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso Amadeu Oliveira levanta um debate maior do que o próprio processo: quem está realmente a interferir na esfera de quem? A narrativa do MP tenta fazer crer que o Parlamento estaria a pôr em causa decisões judiciais. Mas esta leitura, a cargo do Ministério Público, não só distorce a realidade constitucional, como superiormente esclareceu a jurista Maria João de Novais num artigo publicado neste jornal, como cria um perigoso precedente institucional no relacionamento entre poderes.
Para já, o Parlamento não julga, escrutina. E a CPI criada pela Assembleia Nacional não visa reverter uma sentença nem reabrir um processo judicial transitado em julgado. A sua missão é outra: averiguar as implicações políticas, institucionais e funcionais que envolveram a atuação de um deputado e o modo como o Estado lidou com o caso. Simples assim. Não há aqui intromissão na atividade jurisdicional. O Parlamento não pretende substituir-se aos tribunais nem rever decisões judiciais. Pretende, isso sim, entender o contexto político e institucional da prisão, condenação e tratamento estatal de um eleito nacional, num caso que desde o início transbordou o jurídico para entrar no terreno do político, do institucional e do ético. Essa distinção é fundamental numa democracia madura.
Ora, a PGR optou por um caminho perigoso. Ao pedir ao Tribunal Constitucional a suspensão da resolução parlamentar, a PGR posiciona-se como um ator que pretende limitar a capacidade do Parlamento de exercer o seu poder fiscalizador, constitucionalmente garantido. Se há poder que deve resguardar-se de interferir fora da sua esfera é precisamente o Ministério Público. No entanto, a PGR apresenta uma leitura maximalista do artigo 211.º, n.º 7 da Constituição — que estabelece a prevalência das decisões judiciais sobre atos administrativos — para justificar a tentativa de travar um escrutínio político que nada tem que ver com a alteração de decisões judiciais.
Ao fazer isto, o Ministério Público:
1. Estende indevidamente a proteção do poder judicial ao domínio político, como se qualquer matéria que toque num processo fosse automaticamente exclusiva dos tribunais.
2. Reduz o Parlamento a um espectador passivo, impedido de examinar politicamente situações onde cidadãos — incluindo deputados — interagem com instituições do Estado.
3. Cria um precedente de fragilização da separação de poderes, onde um órgão de natureza judicial limita a atuação de um órgão de soberania eleito diretamente pelo povo.
Está claro que o Parlamento exerce um poder político e a PGR exerce um poder judicial. A CPI não quer e nem pode interferir no judicial. A PGR quer impedir um exercício político. As contas são simples. Não é a Assembleia Nacional que violenta a separação de poderes; é a PGR que, ao tentar bloquear um escrutínio político, entra por portas que não lhe pertencem, travando uma iniciativa parlamentar que se insere no âmago da função fiscalizadora do poder legislativo. Se se permitir que qualquer investigação política que incida sobre um caso judicial seja considerada “interferência”, então o Parlamento ficará amarrado e o Ministério Público ficará blindado, sem qualquer escrutínio democrático.
Num Estado de Direito democrático, nenhum poder está acima de ser escrutinado, muito menos quando a atuação institucional se cruza com responsabilidades políticas. O que a PGR parece querer evitar não é a interferência nos tribunais — que ninguém propõe — mas sim a exposição política das consequências, decisões e omissões relacionadas com o caso Amadeu Oliveira. E essa resistência é, só por si, reveladora.
O que esperar? Que o Tribunal Constitucional aproveite a oportunidade para repor equilíbrio e clareza, reconhecendo que escrutínio político não interfere com decisões judiciais e reafirmando que a separação de poderes não é um muro, mas um sistema de equilíbrios. Porque nenhum órgão — incluindo o Ministério Público — pode impedir o Parlamento de exercer o seu mandato fiscalizador.
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