
A democracia cabo-verdiana só se fortalecerá se cada órgão respeitar as fronteiras da sua atuação. É a Assembleia Nacional que deve decidir sobre a criação de uma CPI. É aos tribunais que compete julgar crimes. É ao Ministério Público que compete promover a ação penal — não dizer ao Parlamento como exercer a sua função fiscalizadora. Quando a PGR invoca a violação da separação de poderes por parte da Assembleia Nacional, fá-lo invertendo, de forma preocupante, a lógica constitucional. A criação da CPI não interfere no processo penal, não reaprecia matéria de facto ou de direito já julgada, nem pretende condicionar decisões judiciais. O seu objeto está delimitado: apurar se um deputado, no exercício do mandato, violou deveres funcionais, exerceu indevidamente os seus poderes ou agiu em detrimento da legalidade democrática, não se tratando de situação que se enquadra nos números 2 e 3 do artigo 6.º da Lei n.º 110/V/99, de 13 de setembro, que aprova o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), e alterada pela Lei n.º 5/VI/2001, de 17 de dezembro.
Os acontecimentos recentes envolvendo a condenação do ex-deputado Amadeu Oliveira e a subsequente criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pela Assembleia Nacional abalaram profundamente a confiança pública nas instituições cabo-verdianas. Tanto nas ilhas como na diáspora, instalou-se um clima de perplexidade e desconfiança, agravado por perceções de atropelos processuais e interpretações díspares sobre o papel dos diferentes órgãos de soberania. Em democracias consolidadas, a confiança na justiça é um pilar indispensável — e, quando essa confiança vacila, todo o edifício institucional se fragiliza.
É, por isso, crucial reafirmar um princípio basilar: o processo penal é uno, o Código Penal é uno, e a sua aplicação deve ser uniforme, independentemente de quem esteja a ser julgado. Essa uniformidade, porém, só tem legitimidade quando se apoia num processo justo, equitativo e respeitador da Constituição, sobretudo dos princípios da legalidade e da presunção de inocência. Quando medidas gravosas, como a prisão, são decretadas, não deve subsistir qualquer sombra de dúvida sobre a sua constitucionalidade ou justiça.
O cerne da questão
Mas o ponto central que hoje se impõe discutir não é a decisão penal que condenou Amadeu Oliveira — essa compete integral e exclusivamente aos tribunais. A questão que agora se levanta diz respeito à tentativa da Procuradoria-Geral da República (PGR) de impedir a Assembleia Nacional de exercer uma competência exclusiva: a constituição de Comissões Parlamentares de Inquérito. Ao requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da Resolução da Assembleia, alegando violação da separação de poderes, a PGR não apenas distorce o alcance da função fiscalizadora do Parlamento, como ela própria incorre no verdadeiro e mais perigoso atentado à separação de poderes.
Quem ameaça, afinal, a separação de poderes?
O argumento apresentado pela PGR — de que a CPI invade a esfera judicial — é, além de infundado, profundamente inquietante. Basta ler o texto da Resolução aprovada pela Assembleia Nacional: não existe qualquer tentativa de reabrir o processo penal, rever a sentença, interferir no mérito da decisão judicial ou escrutinar o funcionamento dos tribunais. O objeto da CPI é claro, legítimo e constitucional: apurar a eventual prática, por parte de um deputado no exercício do seu mandato, de atos que violem os deveres funcionais estabelecidos no Estatuto dos Deputados.
Trata-se de averiguar a conduta parlamentar — não a conduta criminal. São dois planos distintos, regulados por normas distintas, e da competência de órgãos distintos.
O tribunal penal apreciou factos sob a ótica do direito penal; a Assembleia Nacional, através da CPI, pretende apreciar factos sob a ótica da ética, legalidade e responsabilidade política inerentes ao estatuto de deputado. Confundir estes dois domínios é não compreender a arquitetura constitucional cabo-verdiana — ou, pior, fingir não compreender.
Assim, quando a PGR pede ao Tribunal Constitucional que impeça a Assembleia de exercer uma competência que lhe é exclusiva, ela não está a defender a separação de poderes — está a violá-la frontalmente. É a própria intervenção da PGR que constitui uma ingerência indevida na esfera do poder legislativo, subalternizando-o perante o poder judicial e, de facto, tentando limitar a sua autonomia fiscalizadora.
O Parlamento e a Constituição
O Parlamento não deve responder ao Tribunal Constitucional — responde à Constituição.
A Constituição da República de Cabo Verde é clara e não deixa margem para ambiguidades:
1. Às comissões parlamentares de inquérito podem ser submetidas “quaisquer matérias de interesse público relevante”;
2. A iniciativa é obrigatória, porque neste caso apresentada por quinze deputados;
3. A Assembleia Nacional exerce poderes próprios, autónomos e não subordinados à tutela judicial.
Ou seja:
Autonomia funcional e equilíbrio democrático
Não cabe ao Tribunal Constitucional analisar o mérito político da criação de uma CPI. Não cabe ao Ministério Público ditar quais matérias o Parlamento pode ou não escrutinar. O Parlamento é soberano dentro da sua esfera — tal como os tribunais o são na sua. E é essa autonomia funcional que preserva a separação de poderes e garante o equilíbrio democrático.
Submeter a atividade fiscalizadora parlamentar ao crivo preventivo do Tribunal Constitucional constitui, na prática, uma tentativa de tutela judicial da função legislativa, algo absolutamente incompatível com o Estado de Direito Democrático.
Um precedente perigoso
Se o pedido da PGR fosse acolhido, abrir-se-ia um precedente gravíssimo: sempre que a Assembleia Nacional constituísse uma CPI sobre um facto que envolvesse, direta ou indiretamente, matéria judicializada, o Ministério Público poderia paralisá-la mediante requerimento ao Tribunal Constitucional.
Tal lógica esvaziaria o poder fiscalizador do Parlamento e desequilibraria o sistema político cabo-verdiano, conferindo ao Ministério Público a prerrogativa de determinar quando, como e se o Parlamento pode investigar os seus próprios membros, algo que a Constituição não lhe atribui.
Tratar-se-ia de um retrocesso democrático inadmissível.
Restaurar a confiança na justiça e nas instituições
Neste momento, quando a sociedade cabo-verdiana enfrenta um clima de descrença e inquietação, é fundamental que as instituições atuem com transparência, serenidade e respeito absoluto pelas suas competências constitucionais.
A Assembleia Nacional, enquanto órgão representativo da soberania popular, tem o dever de averiguar se houve abuso do mandato parlamentar, violação dos deveres funcionais ou instrumentalização dos poderes de deputado para benefício pessoal. Não o fazer significaria fragilizar o Parlamento, abdicar do seu papel fiscalizador e legitimar a suspeita pública.
Da mesma forma, o Ministério Público, cuja missão constitucional é defender a legalidade democrática, não pode agir de forma a limitar o exercício legítimo das competências de outro órgão de soberania. A confiança nas instituições constrói-se com responsabilidade, equilíbrio e respeito mútuo — não com interferências indevidas que apenas agravam tensões e aumentam a perceção de arbitrariedade.
Conclusão: cada órgão no seu lugar, cada poder na sua esfera
A democracia cabo-verdiana só se fortalecerá se cada órgão respeitar as fronteiras da sua atuação. É a Assembleia Nacional que deve decidir sobre a criação de uma CPI. É aos tribunais que compete julgar crimes. É ao Ministério Público que compete promover a ação penal — não dizer ao Parlamento como exercer a sua função fiscalizadora.
Quando a PGR invoca a violação da separação de poderes por parte da Assembleia Nacional, fá-lo invertendo, de forma preocupante, a lógica constitucional. A criação da CPI não interfere no processo penal, não reaprecia matéria de facto ou de direito já julgada, nem pretende condicionar decisões judiciais. O seu objeto está delimitado: apurar se um deputado, no exercício do mandato, violou deveres funcionais, exerceu indevidamente os seus poderes ou agiu em detrimento da legalidade democrática, não se tratando de situação que se enquadra nos números 2 e 3 do artigo 6.º da Lei n.º 110/V/99, de 13 de setembro, que aprova o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), e alterada pela Lei n.º 5/VI/2001, de 17 de dezembro.
Hoje, mais do que nunca, é necessário restaurar a confiança do povo na justiça e nas instituições. E essa restauração só será possível se respeitarmos o princípio elementar que sustenta todas as democracias modernas: a separação de poderes. Que cada poder se mantenha na sua esfera — e que nenhum poder, por mais forte que seja, se arrogue o direito de limitar a competência do outro.
Lisboa, 04.12.2025
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