O impossível possível, ou vice-versa: Cabo Verde entre o discurso (outside) e a realidade
Ponto de Vista

O impossível possível, ou vice-versa: Cabo Verde entre o discurso (outside) e a realidade

Se querem um planeta habitável, com paz e sem pobreza, comecem por aqui. Comecem por quem vive na lama, entre cortes de energia, escolas sem teto, hospitais sem exames, e futebol sem campos. Mas corram! Porque até agora, a única promessa que cumpriram com rigor, consistência e método é esta: “Juntos, vamos arrebentar este país.”

“Juntos somos mais fortes. Juntos faremos do impossível, possível! É possível sim um planeta habitável, pacífico e um mundo sem pobreza” (in Abertura da Conferência do Banco Mundial e FMI, 2025, https://youtu.be/dqsDb0FrJHk)

Frase bonita! Retórica impecável para representaçao! Mas para quem vive em Cabo Verde, ela soa como eco vazio, um discurso sem alma, feito para plateias internacionais que desconhecem o preço da sobrevivência na terra da morabeza.

Porque juntos, sim, somos mais fortes! Mas separados por ilhas sem ligação marítima confiável, sem voos regulares, sem política pública que respeite o direito de ir e vir, somos apenas passageiros da precariedade. O impossível de 1975 continua impossível quando o transporte interilhas é um luxo, não um serviço.

Porque é possível sim um planeta habitável. Mas não quando bairros inteiros enfrentam cortes de energia constantes, quando a água potável é racionada, quando cisternas substituem políticas e a seca é tratada como destino, não como desafio técnico. Habitável para quem?

Porque é possível sim um mundo sem pobreza. Mas não quando a economia local é ignorada, quando o pequeno agricultor não tem apoio, quando o pescador não tem porto, quando o jovem não tem emprego e o empreendedor não tem crédito. Sem políticas sérias de desenvolvimento, o mundo sem pobreza vira apenas slogan.

E porque também é possível reconstruir uma ilha devastada. Mas São Vicente, após as cheias de agosto, continua abandonada à sua sorte. Bairros inteiros sem saneamento, esgotos a céu aberto, estações de bombagem inoperacionais. O povo vive na pele as consequências de um governo que não consegue sequer o possível: traçar um plano sério de recuperação, garantir apoio digno à população, implementar soluções de drenagem e prevenção. São Vicente merece atenção, sim. Mas, não é exceção. É espelho.

Por isso, talvez seja hora de virar o microfone. Que tal lançar um desafio direto ao Banco Mundial, ao FMI, às instituições financeiras que aplaudiram o discurso:

Olhem para Cabo Verde. Olhem para o arquipélago inteiro, onde a promessa de habitabilidade se dissolve entre cortes de energia, falta de água potável, escolas degradadas e hospitais sem recursos. Olhem para o povo que ainda acredita, apesar de tudo. 

Olhem para São Vicente. Olhem para os bairros que ainda cheiram a lama, para as famílias que perderam tudo e continuam sem plano de recuperação. Olhem para a ausência de drenagem, para a falta de resposta, para o silêncio institucional que transforma tragédia em rotina. 

Olhem para os hospitais. Onde um exame de TAC custa 30.000$00 e a segurança social vira espectadora da dor. Onde o diagnóstico depende do saldo bancário, e não da urgência clínica. Onde o sistema de saúde é um labirinto de espera, escassez e abandono.

Olhem para as escolas. Onde o futuro é ensinado em salas degradadas, sem livros, sem computadores, sem dignidade. Onde as crianças aprendem regras para habitar o planeta em salas que mal protegem da chuva. Onde janelas sem vidros e as cadeiras quebradas são metáforas da negligência. 

Olhem para a ELECTRA. Onde a energia falha mais do que funciona, e o cidadão paga caro por cortes que não contratou. Onde a instabilidade energética compromete negócios, estudos, saúde e esperança. 

Olhem para a EDEC. Onde a água potável é privilégio, não direito.

Olhem para a frota marítima e aérea. Onde viajar entre ilhas é um teste de paciência, sorte e orçamento. Onde o arquipélago se transforma em prisão logística, e a mobilidade interna é tratada como capricho, não como necessidade.

Olhem para o desporto. Onde o talento juvenil treina em campos sem relva, sem bolas, sem apoio. Onde o desporto escolar é inexistente, e o desporto comunitário é sustentado por voluntários e fé. Olhem para os estádios de futebol. Porque em 2026 estaremos na Copa do Mundo!  

E olhem para os jovens. Olhem para os que partem, não por aventura, mas por ausência de horizonte. Que se despedem sem rancor, mas com lucidez: aqui não há indicadores de habitabilidade. Não há plano, não há política, não há futuro. A emigração virou projeto nacional — não por escolha, mas por sobrevivência. E cada partida é um voto silencioso contra a promessa não cumprida.

Durante dez anos, teve tempo. Teve recursos. Teve apoio internacional. Mas fracassou em transformar Cabo Verde num "planetinha habitável”. Fracassou em garantir dignidade básica. Fracassou em ouvir o povo antes de discursar para o mundo.

Se querem um planeta habitável, com paz e sem pobreza, comecem por aqui. Comecem por quem vive na lama, entre cortes de energia, escolas sem teto, hospitais sem exames, e futebol sem campos.

Mas corram! Porque até agora, a única promessa que cumpriram com rigor, consistência e método é esta: “Juntos, vamos arrebentar este país.”

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Casimiro Centeio, 28 de Out de 2025

    Kkkk kkkkkkkk Cabo Verde é um país de " Alice nas terras de Delícias " Se discursos inflamados e retóricos fossem riquezas, Cabo Verde seria o país mais rico do Mundo . Pois, de todas as coisas que estão vias de extinção a mais perceptível É O BOM CARÁTER ! O nosso país não é pobre de recursos naturais, mas sim, de BOM CARÁTER !

    Responder


Comentar

Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
Inicie sessão ou registe-se para comentar.