Cabo Verde precisa deixar de ser apenas pista de aterragem para interesses externos e tornar-se torre de controlo da sua própria mobilidade. Empoderar cidadãos no setor aéreo é possível. Mas, exige romper com o modelo de concessão passiva e construir uma aviação com alma, técnica e soberana. A aviação cabo-verdiana não precisa de mais improvisos nem de gestores que confundem céu com abismo. Precisa de cidadania crítica, engenharia institucional e coragem para reverter o ciclo de dependência e descontinuidade. Que estas linhas sejam um plano de voo para quem ainda acredita que mobilidade é direito e não privilégio. E que o “meio Boeing” sirva, ao menos, como monumento à criatividade institucional...ou, quem sabe, como peça de museu da irresponsabilidade pública.
Desde 2016, Cabo Verde vive uma turbulência prolongada no setor do transporte aéreo, marcada por decisões erráticas, contratos opacos e uma gestão que ignora os princípios básicos da aviação civil internacional. O colapso da conectividade interilhas não é apenas um problema logístico. É um atentado à coesão territorial, à cidadania e à soberania nacional.
E foi neste mesmo contexto que surgiu a promessa mais emblemática da era da pós-verdade aeronáutica cabo-verdiana: a aquisição de “11 Boeings e meio”. Sim, meio. Um feito de engenharia retórica que desafia as leis da física, da contabilidade pública e da decência institucional. O “meio Boeing”, que até hoje ninguém sabe se é a fuselagem, a asa, a cauda ou apenas o sonho, tornou-se símbolo da política de voo cego: prometer o céu sem sequer garantir meio avião.
Anatomia do desastre: entre “fusões” (lê-se “acasalamentos logísticos”), leasing, avales e improvisos
A trajetória da TACV e suas sucessivas metamorfoses — Binter Canarias, Bestfly, Icelandair — revela um padrão de descontinuidade institucional e ausência de accountability. Não houve fusão formal entre TACV, Binter, Bestfly e Icelandair — mas sim uma série de acasalamentos logísticos, substituições operacionais e reestruturações financeiras que criaram uma espécie de “mosaico aéreo” cabo-verdiano, onde as fronteiras entre público, privado e estrangeiro ficaram borradas.
O que parece uma dança de empresas é, na verdade, um modelo de dependência logística e financeira, onde o Estado cabo-verdiano atua como fiador de uma companhia aérea que nunca conseguiu voar com asas próprias. A ausência de fusão formal não impede que haja confusão estratégica, com sobreposição de funções, contratos opacos e pouca transparência pública.
A renacionalização da TACV em 2021, após uma privatização mal estruturada, não foi acompanhada de um plano técnico robusto, nem de indicadores de desempenho alinhados às normas da IATA (International Air Transport Association).
Desde então, o Governo de Cabo Verde tem concedido sucessivos avales financeiros à TACV, numa tentativa contínua de manter a companhia aérea estatal operacional, mesmo diante de uma situação de fragilidade financeira que beira a falência técnica. Os avales concedidos até 2025, totalizam mais de 60 milhões de euros, cobrindo empréstimos bancários e contratos de leasing.
Apesar dos apoios, a TACV continua sem alcançar sustentabilidade financeira. O último relatório público da empresa é de 2020, e há dificuldades de acesso a dados atualizados, o que levanta preocupações sobre transparência e viabilidade.
A TACV não passou por uma reestruturação única e coerente, mas sim por uma série de remendos administrativos, financeiros e operacionais, que revelam mais improviso do que estratégia. O padrão se repete: avales sucessivos sem sustentabilidade, mudanças de gestão sem plano de continuidade, criação de empresas paralelas para funções antes assumidas pela TACV, concursos estratégicos que mascaram ausência de visão real.
Em julho de 2025, a TACV lançou um concurso internacional para contratar consultores que elaborem um novo plano estratégico para o período 2026–2031. Este será o terceiro plano estratégico desde 2021, após dois anteriores falhados.
Não é preciso entender de leasing, basta saber o que se quer
A TACV opera atualmente com aeronaves em regime de leasing operacional, modalidade ACMI – Aircraft, Crew, Maintenance and Insurance. Esta modalidade em que a companhia aluga o avião, tripulação, manutenção e seguro, só é viável para operações emergenciais, sendo absolutamente insustentável no longo prazo porque é financeiramente o mais oneroso, por que é tudo incluído, e é mais vulnerável à quebra de contratos, por ser a companhia estrangeira responsável pelas operações. Gera alta dependência externa e perda de controlo que configura elevado risco estratégico.
O leasing financeiro seria o mais vantajoso para Cabo Verde, porque permite a autonomia operacional, podendo a companhia cabo-verdiana escolher o modelo da aeronave, definir rotas e controlar as operações. Embora o investimento inicial seja maior, é mais eficiente porque permite a padronização da frota facilitando manutenção, formação técnica e licenciamentos. O leasing financeiro dilui custos ao longo dos anos, sendo que ao final do contrato, o Estado pode adquirir os aviões por valor residual, consolidando uma frota pública. Isso fortalece a soberania logística e reduz vulnerabilidades em momentos de crise.
Ademais, com frota própria, Cabo Verde pode formar mecânicos, pilotos e gestores certificados pela IATA. Promove formação e retenção de quadros técnicos, gera empregos qualificados e reduz a dependência de técnicos estrangeiros.
O leasing financeiro não é uma utopia. É uma estratégia de transição inteligente entre dependência e autonomia. Cabo Verde não precisa de mais contratos ACMI que voam alto e caem rápido. Precisa de uma frota que reflita sua dignidade territorial, sua capacidade técnica e sua visão de futuro.
É caro? É. Mas, dinheiro não é problema. “Cabo Verde tem dinheiro ki ka ta kaba” (alguém, algures). Não duvidemos! Há dinheiro sim.
Financiamento internacional: há recursos, falta visão redistributiva
É plenamente possível e absolutamente estratégico, recorrer a financiamentos internacionais para empoderar cidadãos cabo-verdianos na aviação civil. Mas o que vem falhando não é a disponibilidade de recursos. É a arquitetura institucional que decide quem pode voar e quem deve continuar aplaudindo da placa.
Cabo Verde já atraiu financiamentos robustos para o setor aeroportuário (ontem e hoje!):
• A concessão dos sete aeroportos foi financiada com €60 milhões por três bancos de desenvolvimento: Banco Mundial (IFC), Proparco (França) e DEG (Alemanha).
• A União Europeia destinou €300 milhões para digitalização, portos e energia.
• O FMI ampliou seu apoio para €60 milhões através do Mecanismo de Crédito Alargado.
Ou seja, dinheiro há! E, em abundância. O que falta é vontade política de canalizar esses fundos para estruturas que empoderem cidadãos nacionais, como cooperativas de manutenção, escolas técnicas de aviação ou empresas de leasing com capital cabo-verdiano. Porque não?
Cabo Verde precisa deixar de ser apenas pista de aterragem para interesses externos e tornar-se torre de controlo da sua própria mobilidade. Empoderar cidadãos no setor aéreo é possível. Mas, exige romper com o modelo de concessão passiva e construir uma aviação com alma, técnica e soberana.
A aviação cabo-verdiana não precisa de mais improvisos nem de gestores que confundem céu com abismo. Precisa de cidadania crítica, engenharia institucional e coragem para reverter o ciclo de dependência e descontinuidade. Que estas linhas sejam um plano de voo para quem ainda acredita que mobilidade é direito e não privilégio. E que o “meio Boeing” sirva, ao menos, como monumento à criatividade institucional...ou, quem sabe, como peça de museu da irresponsabilidade pública.
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A equipa do Santiago Magazine