
Cabo Verde construiu uma reputação que muitos países da nossa região e da nossa zona comparável invejam: estabilidade política, instituições sólidas, boa governação, respeito internacional. Essa imagem, embora fundada em conquistas reais, é um escudo confortável mas mentirosa. A realidade é teimosa, e a verdade é que Cabo Verde vive um momento de fragilidade profunda da sua capacidade governativa — uma erosão lenta, mas contínua, que ameaça comprometer o futuro do arquipélago.
A crise não é apenas económica. É institucional, social, demográfica e, sobretudo, de execução política. E ela declara-se de forma indesmentível, para quem queira ver, nos sectores essenciais do Estado.
A morosidade judicial tornou-se símbolo de frustração coletiva. Processos que se arrastam durante anos minam a confiança dos cidadãos e afastam investidores. O discurso oficial fala de melhorias, reformas e modernização, mas a percepção pública aponta para outra direção: tribunais sobrecarregados, sistemas informáticos obsoletos, práticas corporativas resistentes à mudança e um sentimento de impunidade generalizada. Uma Justiça lenta não é neutra — ela fragiliza o Estado de direito e compromete a credibilidade do país.
Adiante. O sector da saúde é, porventura, o espelho mais cruel das desigualdades cabo-verdianas. A falta de especialistas, equipamentos que avariam e demoram meses a serem reparados, evacuações médicas constantes e hospitais incapazes de responder a necessidades básicas são realidades que nenhum discurso consegue apagar. A população sente-o diariamente: quem tem recursos procura tratamento no exterior; quem não tem, espera. Ou morre. Do jeitinho cabo-verdiano.
Agora, os transportes. Num arquipélago, mobilidade não é luxo — é existência, é conexão, é tacto. E Cabo Verde continua a falhar nesse ponto fundamental. A aviação interilhas é instável, cara e imprevisível. O transporte marítimo vive dependente de operadores com pouca concorrência e enfrenta problemas que se repetem há décadas. A frota exígua, horários inconsistentes e frequentes interrupções são cenários que me causam revolta. Enfim, se não houver ligações regulares e confiáveis, o desenvolvimento será sempre desigual e a unidade nacional – há inclusive um Ministério de Coesão Territorial cuja eficiência se desconhece – torna-se falácia, porque não atende a um problema elementar que é a Constitucional unidade e unificidade nacional.
Para variar, o país – ou melhor, quem o gere – orgulha-se também de ter aumentado os níveis de escolaridade, mas a verdade é que o sistema educativo não está a preparar os jovens para um mercado global competitivo. As empresas queixam-se de falta de competências e os jovens reclamam da falta de oportunidades, optando pela emigração desenfreada. As universidades aumentam o número de graduados, mas não incrementam a sua empregabilidade. Resultado: milhares de cabo-verdianos qualificados e desesperados continuam a partir, levando consigo capital humano que o país não consegue repor.
Acima de tudo isto está a falta de transparência e responsabilização. Os relatórios da ARAP, do Tribunal de Contas e da Provedoria de Justiça a denunciarem irregularidades recorrentes provam esta percepção. Não pretendo ser tanto pessimista, porque o escrutínio existe… no papel. Só que raramente se traduz em responsabilização efectiva. Qualquer cidadão comum, sem amarras partidárias e/ou funcionais, sente que há dois sistemas: um rígido para os pequenos, um complacente para os grandes. Essa infeliz mas realista ideia corrói a confiança democrática e vem enfraquecendo o sentido de justiça social.
Eventualmente, creio eu, o sinal mais alarmante seja o demográfico: Cabo Verde está a perder jovens, a perder população, a ruir estruturas familiares. A emigração acelerada, combinada com baixa natalidade, revela um país que não está a conseguir oferecer perspetivas. Envelhecemos, reduzimo-nos e ficamos ainda mais dependentes — exactamente o contrário do que um pequeno Estado insular necessita para sobreviver num mundo competitivo.
Ora bem, Cabo Verde precisa de reformas profundas e corajosas — e precisa delas agora, obviamente, com upgrade dos nossos actores políticos. Porque, ao fim e ao cabo, os problemas domésticos nossos são conhecidos, diagnosticados, estudados, debatidos até serem novamente esquecidos. A meu ver, o que falta é acção, execução, planeamento estratégico e governação com resultados. E isso se faz com pessoas competentes, sabedores. Infelizmente, eles têm vindo a afastar-se, day after day, da política baixa que grassa, que contamina e não atrai. É só ver os níveis crescentes de abstenção a cada ciclo eleitoral. Precisamos, insisto, de dirigentes com pedagogia política. E falo isso apontando directamente aos dois partidos da ourela do poder, MpD e PAICV. Vêm aí as legislativas e os fundamentos ideológicos da criaçáo de ambos vão forçosamente vir à tona, momento-chave para ajudar-nos a discernir sobre coerência e honestidade política. Ou, dito de outro modo, sobre quem tem menos desvios da carta fundatória do respectivo partido.
Admito e acredito estar certo de que a democracia cabo-verdiana continua sólida, mas não pode viver dessa boa reputação. A estabilidade não pode ser desculpa para a inércia. O país merece e exige líderes que façam mais do que gerir a rotina e sim de líderes com visão, competência e coragem política para transformar o arquipélago num Estado minimamente eficaz, moderno e justo. Longe, bem longe, de um Estado que patina no próprio lodo.
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