
...a mesma maioria que cria a CPI pode agora ter de lidar com a possibilidade de ver a sua decisão declarada inconstitucional. Um acto político aprovado pela força dos números pode ser travado pela força do direito. É um choque institucional que coloca o Tribunal Constitucional como árbitro entre o Parlamento que decidiu e o Ministério Público que alerta. E tudo isto poderia ter sido evitado se, no meio de tanta confiança, alguém tivesse tido a prudência de perguntar: “E se isto der para o torto?”
Comecemos pelo óbvio, embora ninguém o diga em voz alta: quando uma maioria absoluta comanda o plenário, nada passa sem que ela deixe passar. O resto é encenação para entreter o público. A Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Oliveira não caiu do céu, não nasceu por milagre democrático e, certamente, não foi arrancada a ferros pela oposição. Foi aprovada porque alguém, na maioria, decidiu que sim. Ou porque alguém decidiu olhar para o lado no momento certo. Mas passemos à matemática, que é menos dada a actos de fé.
A matemática que não deixa fugir ninguém
A Assembleia tem 72 deputados: 38 do MpD, que garante maioria absoluta, e 34 da oposição, somando PAICV e UCID. Não há cenário possível em que a oposição consiga, sozinha, aprovar seja o que for. Mesmo que todos votassem a favor da criação da CPI, continuariam a ser ultrapassados pelos 38 votos da maioria. Logo, se a CPI passou, foi porque o MpD votou a favor, porque parte do MpD se absteve ou porque houve votos internos suficientes para dar luz verde. Esta é uma realidade incontornável e desmonta desde logo qualquer ideia de que a CPI seria um gesto isolado ou uma iniciativa exclusiva da oposição. Não é: é um produto da maioria.
Erro político, falha jurídica ou ambos?
Há aqui uma dupla falha: política e jurídica. Politicamente, a maioria pode ter acreditado que aprovar a CPI funcionaria como gesto de firmeza institucional, uma demonstração de que o Parlamento também reage a situações consideradas graves. Juridicamente, tudo indica que o Parlamento ignorou que o caso já tinha sido apreciado ao mais alto nível e que reabri-lo seria sempre arriscado. O Ministério Público, nesse sentido, actuou como travão institucional, lembrando que nenhum impulso político (mesmo sustentado por maioria absoluta), está acima da Constituição.
É precisamente aqui que surge a discrepância mais gritante: a mesma maioria que cria a CPI pode agora ter de lidar com a possibilidade de ver a sua decisão declarada inconstitucional. Um acto político aprovado pela força dos números pode ser travado pela força do direito. É um choque institucional que coloca o Tribunal Constitucional como árbitro entre o Parlamento que decidiu e o Ministério Público que alerta. E tudo isto poderia ter sido evitado se, no meio de tanta confiança, alguém tivesse tido a prudência de perguntar: “E se isto der para o torto?”
A responsabilidade de governar com maioria absoluta
No fim, fica a pergunta inevitável: se a maioria tinha os números e os meios para evitar este constrangimento, porque avançou de forma tão confiante? Não sabiam? Subestimaram o impacto constitucional? Ou foram movidos por aquela velha tentação política de agir primeiro e pensar depois? Qualquer que seja a resposta, a consequência é a mesma: a CPI só existe porque o MpD permitiu que existisse, e é agora o sistema judiciário que tem de resolver o que o impulso parlamentar criou.
Se o Tribunal Constitucional concluir que a resolução é inconstitucional, o desgaste será inevitável. O Parlamento verá o seu acto anulado e a maioria será obrigada a assumir que ultrapassou os limites que a própria Constituição impõe. E, ironicamente, aquilo que começou como demonstração de força poderá acabar como demonstração de fragilidade. Quando se governa com maioria absoluta, a responsabilidade cresce, não encolhe. A margem de erro diminui. E a Constituição, essa criatura teimosa, continua a ser o único limite que não se deixa intimidar por maiorias, entusiasmos ou estratégias mal calculadas.
Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
Inicie sessão ou registe-se para comentar.
Comentários