As tentativas de padronização linguística em laboratório nos contextos sociais democráticos…ta da?
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As tentativas de padronização linguística em laboratório nos contextos sociais democráticos…ta da?

...o crioulo cabo-verdiano está vivo e vibrante. Mas impor-lhe um padrão artificial, “laboratorial”, sem trabalhar o preconceito muito baseado no chamado bairrismo entre ilhas e regiões vai desembocar sempre em situações em que alguém vai conseguir demonstrar que o padrão se baseia e se parece mais com uma variedade de uma região do que de outra. Poderia ter um efeito semelhante ao do occitano: dividir em normas concorrentes, afastar os falantes, e fragilizar a própria apropriação da língua.

Historicamente, processos de padronização “in vitro” — isto é, feitos em gabinete, com seleção deliberada de variantes — quase nunca resultaram bem sozinhos, a não ser quando coincidiram com fatores sociais e políticos muito fortes. Em Cabo Verde, hoje, com a incapacidade que os agentes têm mostrado em montar estruturas estatais fortes e tecnicamente vigorosas, onde predomina a incapacidade de assegurar o mínimo básico (transportes, justiça, saúde, gestão educativa) muito dificilmente as tentativas de implementação de uma politica linguística eficaz se vislumbra possível.

Casos históricos em que “funcionou” pela força do Estado

Hebraico moderno (Israel, séc. XIX–XX): não havia uma variedade falada viva para servir de base. A “revitalização” foi em grande medida uma reconstrução em laboratório (a partir da Bíblia, da gramática e do léxico antigos), adaptada depois ao uso popular. Funcionou porque havia um projeto nacional forte e um sistema educativo unificado.

Norueguês (século XIX): duas normas foram criadas em gabinete (Bokmål e Nynorsk), uma aproximada ao dinamarquês, outra construída a partir de dialetos rurais. Até hoje coexistem, com tensões, mas a padronização foi possível por decisão política.

Turco (século XX, Atatürk, exemplo dado, certa vez, pela própria Dominika Swolkien): houve uma reforma ortográfica e lexical radical, com eliminação massiva de elementos árabes e persas, substituídos por formas artificiais ou inventadas. Funcionou porque houve Estado centralizador, educação obrigatória e controlo dos media.

Fora desses casos, em comunidades plurais e sem forte poder central, a padronização in vitro costuma gerar: i) Resistência popular; ii) fragmentação (as pessoas continuam a usar seus lectos e o esforço politico fica só nos livros e documentos oficiais).

Em Cabo Verde, nem com o partido único e democracia revolucionária se conseguiu impôr a escrita fora dos padrões tradicionais (recordar a resistência ao /Ĉiga/ em vez de /txiga/). Temos que aprender com o passado. Sem consenso social, sem pressão de Estado centralizador comparável a Atatürk, e com identidades insulares fortes, a tentativa de padronização in vitro tenderia a criar mais rejeição do que unificação. Mas eu creio no bom senso da nova geração que, estudando as variedades do estado atual deixarão de ser tão contra qualquer variedade que não a sua...si ka fila tudu, ta fila un pónta.

O occitano é um exemplo claro de como a padronização in vitro pode falhar ou ficar pela metade, e muitas vezes gerar stress que faz mais atrapalhar do que ajudar.

O Caso do occitano

Fui fazer uma visita de estudos à região centro-sul da França, há 15 anos, para ver a realidade de didatização do occitano em França. O occitano (ou lenga d’òc) foi durante a Idade Média uma das línguas de cultura mais prestigiadas da Europa (lírica trovadoresca, administração local, etc.). A partir do séc. XVI, o francês foi se impondo como língua do Estado centralizador e o occitano foi progressivamente relegado ao estatuto de língua regional, fragmentada em dialetos (provençal, languedociano, gascão, auvernês, etc.).

Tentativas de padronização

No século XIX, o movimento felibrige, liderado por Frédéric Mistral, tentou criar uma norma literária provençal para reviver a língua. Mas essa opção baseava-se num dialeto elevado artificialmente a padrão, sem refletir toda a diversidade. Mais tarde, no século XX, outros grupos propuseram ortografias “unificadas” (grafia clássica inspirada no latim, por exemplo). Essas normas foram em grande parte trabalhos de gabinete, escolhendo variantes e tentando criar um sistema único.

O problema

Nenhum modelo conseguiu impor-se de facto em todo o território occitano. Hoje, o occitano sobrevive em variedades locais, mas não há uma norma consensual nem socialmente assumida. O ensino e a escrita ficam sempre fragmentados: há quem use a grafia clássica, outros a mistraliana, outros adaptações regionais.

O que se aprende do caso occitano

O occitano mostra que padronização in vitro, feita sem consenso social, tende a dividir em vez de unir. Mesmo com boas intenções (revitalizar a língua), o excesso de “engenharia linguística” criou afastamento dos falantes, que continuaram a usar seus falares naturais e a língua nunca recuperou vitalidade plena e permanece num estatuto frágil.

Fazendo um paralelo com Cabo Verde:

A situação é quase inversa, porque o crioulo cabo-verdiano está vivo e vibrante. Mas impor-lhe um padrão artificial, “laboratorial”, sem trabalhar o preconceito muito baseado no chamado bairrismo entre ilhas e regiões vai desembocar sempre em situações em que alguém vai conseguir demonstrar que o padrão se baseia e se parece mais com uma variedade de uma região do que de outra. Poderia ter um efeito semelhante ao do occitano: dividir em normas concorrentes, afastar os falantes, e fragilizar a própria apropriação da língua.

A prioridade certa

O caminho, em vez de atalhos técnicos, deve ser:

·         consolidar o ensino da Língua Cabo-verdiana, com estratégias que promovem a intercompreensão de todas as variedades

·         combater o preconceito linguístico,

·         valorizar a diversidade insular,

·         e permitir que os falantes se apropriem da língua em toda a sua riqueza.

Se a padronização (seja laboratorial, seja pela adoção de uma das variedades) vier a acontecer, terá de ser consequência natural desse processo, fruto de consenso social e cultural — nunca um produto de laboratório apressado.

*Linguista, docente de LCV (UNICV – Pólo Assomada)
Co-autor do programa do 10.º ano

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