Quando o Estado de Direito se dobra. Quatro anos de arbitrária clausura de Amadeu Oliveira
Editorial

Quando o Estado de Direito se dobra. Quatro anos de arbitrária clausura de Amadeu Oliveira

"O verdadeiro Estado de Direito não se mede pela estabilidade das instituições, nem pelo número de eleições realizadas. Mede-se, acima de tudo, pela coragem de garantir os direitos de todos, sobretudo daqueles que são inconvenientes ao poder. E enquanto não formos capazes de assegurar isso, a nossa democracia será, no melhor dos casos, uma ilusão confortável."

Cabo Verde gosta de se apresentar ao mundo como um exemplo de democracia, estabilidade institucional e respeito pelos direitos humanos. É um retrato que agrada aos observadores internacionais, à imprensa estrangeira e às agências de financiamento.

No entanto, para quem acompanha com atenção o funcionamento interno do nosso Estado, há episódios que nos obrigam a interrogar a profundidade real desse compromisso com o Estado de Direito. O caso do advogado e ex-deputado Amadeu Oliveira é, talvez nos dias que correm, o mais gritante exemplo dessa contradição.

Detido a 18 de julho de 2021 no Aeroporto de São Vicente, Amadeu Oliveira viu a sua imunidade parlamentar ser suspensa não por deliberação do plenário da Assembleia Nacional, como exige a Constituição, mas por uma resolução da Comissão Permanente, num período em que o Parlamento se encontrava de férias. Esta simples infração procedimental deveria bastar para anular todo o processo. No entanto, não só foi ignorada, como foi posteriormente validada pelo Tribunal Constitucional, numa decisão que alguns juristas classificaram como uma “normalização do arbítrio”.

A violação da Constituição não foi meramente técnica — ela foi política e profundamente simbólica, como se pode constatar qualquer cidadão empirista das leis mas atento ao seu meio. Porque, como humildemente entendemos, o Estado de Direito existe, precisamente, para proteger os indivíduos contra decisões arbitrárias, especialmente quando o poder político ou judicial deseja fazer calar vozes incómodas.

Amadeu Oliveira, com todas as suas excentricidades, era uma dessas vozes. Não era um político convencional, nem um advogado tímido. Denunciava publicamente juízes, chamava o sistema à razão, fazia perguntas desconfortáveis. Num Estado democrático de verdade, isso é permitido. Num Estado que apenas se proclama democrático, isso é punido.

Adiante. Juristas do gabarito de Germano Almeida foram claros na sua denúncia. Almeida, cujos artigos sobre esta matéria publicados na imprensa resultaram no livro “Amadeu Oliveira: O inferno da Não-Justiça”, chegou a afirmar que a prisão de Amadeu foi “ilegítima”, “absurda”, e que, em vez da cadeia, se ele de facto tivesse cometido algum excesso mental, “estaria era num manicómio”.

José António dos Reis, analista político, foi além da retórica e desmontou tecnicamente, em diversos artigos no Santiago Magazine, os alicerces jurídicos do processo. Demonstrou, por exemplo, que não havia base legal para a imputação do crime de responsabilidade e alertou para o perigoso ativismo judicial em curso — um poder que legisla por via interpretativa e cria precedentes sem amparo constitucional.

Entre os mais ativos críticos da condução do processo esteve o conceituado jurista e escritor Germano Almeida, que em várias intervenções públicas classificou a prisão como "ilegítima" e a decisão da Assembleia como "inaceitável até no tempo colonial”.

“Está mal preso… Parece ter havido uma conspiração de membros de órgãos de soberania para calar Amadeu Oliveira”, classificou, antes de ser ainda mais contundente: “Se o Amadeu estivesse num manicómio entendíamos. Agora, estar na cadeia? Estou convencido que já não sabem como resolver o problema do Amadeu, por ser tão absurdo.”

Recentemente, GA nos brindou com mais uma relíquia de pensamento, num seu artigo publicado pelo semanário A Nação. “Não e pode negar que, a partir de 1990, a democracia e o Estado de direito Democrático e outras expressões afins ganharam soberania na nossa sociedade, na nossa ordem jurídico-política, e são, certamente, os mantras mais repetidos, e repetidos à exaustão. Porém, na mesma proporção em como são ignorados”.

Do ponto de vista técnico-constitucional, o jurista José António dos Reis também foi dilacerante. Em diversas análises publicadas no Santiago Magazine, defendeu que o processo violou princípios elementares do direito constitucional e acusou o Tribunal Constitucional de exercer “ativismo judicial”.

“Não existe base legal para imputação ao arguido do crime de responsabilidade”, escreveu, JAR acrescentado: “A razão do meu questionamento… prende-se com flagrantes atropelos à lei e à Constituição que envolvem o caso Amadeu Oliveira”.

E vale lembrar e reverberar isto: O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou a condenação de Amadeu Oliveira a sete de prisão por Atentado contra o Estado de Direito, na suposta fuga à França com o seu constituinte Arlindo Teixeira, descartou, arrancando do processo, 24 factos dados provados pelas instâncias judiciais em como Oliveira agiu na qualidade de defensor oficioso e não como deputado da Nação. Os juízes do STJ, “abusando e desvirtuando o Princípio de Livre Apreciação de Prova, decidiram eliminar, cortar, suprimir, extrair e amputar” esses factos “que constam da decisão do Tribunal de Relação de Barlavento”.

Daniel Ferrer Lopes defendeu, em artigo publicado neste jornal, que “"vai ficar para a história desse suposto ‘Estado de Direito Democrático’  que um determinado Cidadão foi condenado à 7 anos de prisão efectiva não por uma decisão que fosse da responsabilidade de Juízes, mas por uma decisão tomada por um computador e por uma impressora, a quem as culpas devem ser assacadas".

Na altura, eu escrevera isto e procede. “O Supremo Tribunal de Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial não reagiram aos contactos de Santiago Magazine sobre a denúncia de Amadeu Oliveira de que no Acórdão 137/STJ/2023 que confirmou a sua condenação a sete anos de prisão, por Atentado contra o Estado de Direito, na suposta fuga à França com o seu constituinte Arlindo Teixeira, foram eliminados do processo, de forma propositada, 24 factos dados provados pelas instâncias judiciais em como ele, Oliveira, agiu na qualidade de defensor oficioso e não como deputado da Nação”. 

A verdade em cativeiro

O julgamento de Amadeu Oliveira durou 72 dias, envolveu mais de 70 horas de audições e resultou numa pena de sete anos de prisão efetiva. A sentença incluiu ainda a perda do mandato parlamentar e a inelegibilidade por quatro anos. Agora, 18 de Julho, quatro anos após a sua prisão fora-da-lei (leia a cronologia de todo o processo no link desta notícia no Santiago Magazine), o ex-deputado encontra-se encarcerado, à espera do resultado do recurso interposto, enquanto a sociedade cabo-verdiana assiste, na maioria silenciosa, ao desenrolar de um processo que fere os pilares de qualquer Estado de Direito digno desse nome.

Porque, no fim das contas, a pergunta é simples: que valor tem a Constituição se as suas normas são ignoradas por conveniência? Que tipo de justiça é esta que julga sem respeitar os procedimentos mínimos de legalidade? Que tipo de democracia é esta que se cala quando um dos seus é privado de liberdade sem o devido processo legal? E qual o papel do Presidente da República, garante da Constituição, nesse processo?

Posso estar errado, mas quero crer que o sistema (judicial e político ou a soma dos dois) não o o quer fora da cadeia. Porque, de facto, Amadeu é uma bomba-relógio e isso não convém àqueles que possuem e escondem rabos-de-palha.

O caso Amadeu Oliveira não é, apenas, o julgamento de um homem que terá furtado ao sistema para ajudar um condenado-absolvido a sair do país e reencontrar a família em França – há crime? Sim, mas os trâmites que o levaram às barras dos tribunais foram também criminosos, porque fora-da-lei.

Como dizia, o julgamento de Amadeu Oliveira é o espelho de um país que se gaba de ser um Estado de Direito, mas que, quando confrontado com o teste mais difícil — proteger os direitos de quem pensa diferente —, falha. E falha redondamente. Na verdade, falha para a lei, mas não para quem protege e jamais para quem deliberadamente quer eliminar.

O verdadeiro Estado de Direito não se mede pela estabilidade das instituições, nem pelo número de eleições realizadas. Mede-se, acima de tudo, pela coragem de garantir os direitos de todos, sobretudo daqueles que são inconvenientes ao poder. E enquanto não formos capazes de assegurar isso, a nossa democracia será, no melhor dos casos, uma ilusão confortável. E essa velhaca Procuradoria um espectro do Estado de Direito que finge, descaradamente, defender.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine