Em Dezembro de 2018 o Director-Geral e CEO da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo, que congrega mais de 280 transportadoras em todo o mundo) chamou a atenção dos Estados para os cuidados a ter com a privatização dos aeroportos, seja por concessão, seja por venda de activos, e reforçou as críticas da IATA ao modo como as concessões são feitas no mundo.
As críticas são sustentadas por um estudo conduzido pela consultora McKinsey, cujas conclusões revelaram que as privatizações encareceram os serviços aos consumidores, elevaram custos às companhias aéreas e não trouxeram ganhos de eficiência substanciais. O CEO Alexandre de Juniac, de nacionalidade francesa, diz mesmo que a IATA “em geral, não é favorável a privatizações, recomendando aos governos que tenham cuidado com esses processos”. Referiu, ainda, que o problema está na modelagem dos processos, normalmente feita em cima dos joelhos e sem regras para garantir benefícios de longo prazo aos passageiros e às transportadoras.
Já em Junho de 2018, a IATA tinha apresentado o documento “Airport Ownership and Regulation”, elaborado em parceria com a Deloitte, cujo sumário executivo adianta logo o problema da regulação económica, isto é, “a participação privada requer uma regulação robusta e lá onde ela existe deve ser revista no sentido de maior eficiência”. Tudo ao contrário daquilo que o Governo de Cabo Verde pretende fazer com a alteração do diploma que regula o regime de concessão dos aeroportos.
Até à data, as decisões estratégicas que nortearam a gestão da FIR Oceânica do Sal e dos aeroportos, sob a alçada da ASA, propiciaram um salto qualitativo sem precedentes na construção de um sistema de aviação civil dinâmico e sustentável, viabilizando ainda uma rede aeroportuária capaz de catalisar o turismo e o negócio aéreo.
No processo de separação que agora se engendra, o Vice-Primeiro Ministro afirmou, de forma confusa, que a FIR é uma “Cash Cow” (Vaca Leiteira) e que o Filet Mignon ficará no Estado, enquanto a vaca magra “Rede de Aeroportos deficitários” vai para o privado. É evidente que as afirmações são desajustadas, para além de, pela primeira vez em 37 anos de actividade dessa Região de informação de Voo, ser etiquetada de forma tão rasteira por um titular de cargo público.
Os benefícios resultantes da FIR Oceânica do Sal foram e continuam a ser importantíssimos para a segurança da navegação aérea no corredor Europa-América do Sul e, desde logo, para Cabo Verde, tanto mais que dela resultam receitas que possibilitam a sustentabilidade da ASA, o desenvolvimento de outras infra-estruturas aeroportuárias e de navegação aérea e o apoio ao funcionamento de outras entidades nacionais como a Guarda Costeira, o Instituto de Meteorologia e Geofísica e a Agência da Aviação Civil. Isto é, apesar do princípio da recuperação de custos definidos pela ICAO e pela IATA no desenho do regime de taxas, essas organizações internacionais sempre entenderam que a FIR e o Aeroporto do Sal contribuíam, à uma, para a segurança da navegação aérea no Atlântico médio.
Daí a decisão de transferir para a tutela de Cabo Verde, em 1981, o sector oceânico então sob responsabilidade do Senegal, como reconhecimento pela boa posição geográfica do arquipélago e pelo contributo do aeroporto do Sal para a garantia desses bons níveis de segurança das operações aéreas. Responsabilidades que ainda se mantêm dado o crescente aumento do tráfego no corredor Europa-América do Sul.
A configuração do espaço aéreo cabo-verdiano, que define o que é navegação em rota, área terminal do Sal, aproximações e aterragens nos aeroportos, obedeceu a políticas da ICAO sobre gestão económica e financeira dos aeroportos e da navegação aérea. A subsidiação cruzada, um modelo largamente estudado e aplicado nas empresas prestadoras de serviço aeroportuário e de controlo de tráfego aéreo, foi o que permitiu alavancar e modernizar o sector. Esse modelo de gestão, planeamento e governança permitiu que fossem os utilizadores da FIR oceânica a contribuir para a modernização do Sistema de Controlo de Tráfego Aéreo em Cabo Verde, onde também se inclui investimentos em equipamentos e procedimentos de apoio à aproximação e aterragem nos aeroportos.
Quem se der ao trabalho de consultar os estudos sobre o regime de tráfego, tarifas e finanças da ASA, bem como acordos e memorandos de entendimentos assinados ao longo dos anos com a IATA, encontrará a chave de parcerias globais e objectivos partilhados desde a criação da FIR. Um sistema de governança diferente dificilmente permitiria (ou permitirá) soluções modernizadoras no sector aeroportuário, ainda com pouca massa crítica económica. Sejamos realistas: num país insular, fragmentado, com um mercado endógeno pequeno e aeroportos com baixa intensidade de tráfego, não se deve esperar rentabilidade a curto ou médio prazo.
Os números relativos a Cabo Verde ainda são baixos e fazem com que, por exemplo, o Aeroporto da Praia seja deficitário (e continuará a sê-lo por alguns anos) não querendo isto dizer que há défice de estratégia e planeamento. Bem pelo contrário. Quando em 2004 se liberalizaram os voos charter e diversas companhias aéreas iniciaram ligações do norte da Europa com o Sal utilizando aeronaves com código de referência 4C (A320, A321, B737) e 4D (B757, B767), pôs-se logo o problema do aeroporto alternante (que era Dakar) com as limitações e riscos ligados ao payload, à autonomia e à segurança.
E quando em 2005 se inaugurou o aeroporto da Praia o sistema encontrou um suporte seguro, porque o alternante que antes estava a 340 milhas náuticas do Sal passou a estar a 113. Todos os players saíram a ganhar: em primeiro lugar o país que passou a oferecer serviços aéreos de melhor qualidade e, em segundo lugar, os investidores hoteleiros e operadores aéreos que rentabilizaram os seus activos. Se a questão se resumir a vacas gordas ou magras, deduz-se que um privado dificilmente fará os investimentos almejados, mesmo se estratégico ou crucial para o sistema.
Se se badala tanto que os aeroportos são deficitários como dizer depois que os privados vão fazer os investimentos necessários? Imperará a lógica do lucro, o que, aliás, está fazendo escola em Portugal. A privatização dos aeroportos portugueses aconteceu em 2012, quando o tráfego superou 15 milhões de passageiros e era possível falar em negócio aeronáutico e não-aeronáutico pujantes.
O discurso contraditório do governo alcança o apogeu máximo quando retira competências de regulação económica à Agência da Aviação Civil, remete o regime tarifário para o concessionário, despreza o parecer da autoridade aeronáutica e fala em total lisura do processo de alteração legislativa. Fala em estudos e não os apresenta nem diz quem os fez.
Quero acreditar que isso tudo não passa de um discurso descuidado e que por detrás de frases bonitas e cintilantes pode estar uma visão fugaz do presente, míope do futuro e nebuloso para a nação. Grave e lamentável a todos os títulos.
* Título da responsabilidade da redação
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