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Pátria minha — história subjectiva
Sociedade

Pátria minha — história subjectiva

Hoje fazemos o regresso ao passado duma outra forma: através de um texto publicado na revista «Pública», do jornal português «Público», por alturas do 30º aniversário da independência nacional, a nossa «hora grande», o nosso «dia maior», independentemente das feições que tomariam os novos poderes.

Vendo assim à distância, talvez esteja neste texto a génese (inconsciente) do actual projecto «Pátria Soletrada à Vista do Harmatão»

1.

Imagens longínquas, mas vívidas: meninos de bibe branco, em fila indiana, cantando «heróis do mar, nobre povo». Posto escolar nº 53, colonato de chão bom, tarrafal. Era a pré-primária, eram as primeiras letras. Outubro era um pátio expectante aguardando a confirmação ou a danação. Dona Minda trazia bananas da pesagem, que depois enfiávamos num orifício aberto no tampo da carteira. O leite preparado numa lata de vinte litros, com os dizeres «produtos porcinos do montijo». Mesmo nas férias, não parava a distribuição — desarranjos intestinais, uma caganeira pegada. A escola tinha casa de banho, eletricidade e água canalizada — um privilégio; mas nós continuávamos a «ir no mato». Manso pátio de rubras acácias floridas, uma enorme amendoeira, coqueiros altaneiros. Ao domingo, a catequese; ministrada por matronas carrancudas — «nós damos graças ao senhor». Pouco depois, desentender-me-ia com Ele por causa de um padre que, no dia da minha primeira confissão, vi pontapear um cão no interior da igreja.


O campo de concentração, colónia penal, presídio — o gulag português. Fica bem dizer que era só para comunistas, essa seita que trincava infantes ao desjejum, e turras que chacinavam os filantropos brancos, esses que lhes haviam levado a fé e a civilização. No mínimo, uns ingratos. A sua imponência dominava todo o plaino onde fora implantado. Perto, a granja nova; onde, placidamente, laboravam os internados. Perto, a lixeira, onde, à terça-feira, aguardávamos a chegada da carroça do lixo puxada por dois majestosos bois, maio e pinto. Recordar o meu primeiro brinquedo, um saxofone de plástico, oferecido por um preso de nome Gabi. Comunista de vila velha de ródão. Onde o tejo entra em portugal, disse-me. Moço feito, nunca fui verificar no mapa — bastou-me a sua palavra.

Nas matas da guiné, o império desfazia-se fragorosamente ao impacto dos mísseis strela. Mas nós continuávamos a salmodiar o portugal uno de minho a timor, os rios da metrópole e seus afluentes; as linhas férreas, estações, apeadeiros e ramais; os acidentes geográficos e as alturas da serra da estrela. Porém, nada sabíamos do vulcão do fogo ou do pico d’antónia.

Recordar o dia 1 de maio de 1974, dia da libertação dos prisioneiros do campo de concentração. Ameaças de fazer explodir os portões. Minha mãe trancou-nos em casa e pôs-se a rezar. Júbilo. Lágrimas. Abraços. Vinte e nove anos antes, sob os céus da europa, houvera um outro maio assim. Vi, pela primeira vez, a magnificência de um avião — um deus tinha descido à terra. Meu tio pescava para o campo. Nós abastecíamos na cozinha do cozinheiro pina. Eu tinha livre acesso ao campo. Vi o arrear da bandeira das quinas. Fiz uma saudação comovida. Vi os olhos mais tristes que alguma vez foram vistos. Mais tarde vi-os descritos por um poeta do cancioneiro. Olhos de cão. «Sol, suor, verde o mar, séculos de dor e esperança». Nas ruas, cartazes com a efígie de Amílcar Cabral conclamavam: independência total e imediata; 5 de julho, todos a Praia. Manhã cedo, o povo amontoado nos velhos fords cinzentos e magirus amarelos das obras públicas. Eu, desde os barrancos de massapé vermelho, sonhava os afagos duma mulata encabritada. Regresso, já noite fechada, bandeiras ondulando ao calor de «julho nosso orgulho». Nós téra pa nós povu.

Recordar: o meu primeiro livro, capa vermelho tinto, um mundo de mistérios. O colonato passou a posto agropecuário Ernestina Silá. Um fiasco. O campo passou a quartel, centro de instrução político-militar. Os primeiros recrutas, a quem vendia cigarros e bananas. Um dicionário aurélio encontrado por baixo de um canhão 76, oferta do camarada Fidel. Culpá-lo pelo meu gosto por vocábulos raros. Início da campanha de reflorestação, correção torrencial e retenção das águas pluviais. Campanha de planeamento familiar — recordar os primeiros preservativos, usados à laia de balões — e incremento dos cuidados materno-infantis. Diminuição drástica da mortalidade infantil. Campanha de alfabetização de adultos. Recordo o entusiasmo de minha mãe soletrando as primeiras letras. Teria aprendido a rabiscar o seu nome? Recordar os «camaradas» de balalaica branca. Nascimento das cooperativas, tribunais populares, presididos por uma gente muita bronca. Um gáudio. Não duraram muito — paz às suas defuntas almas. Instalação da «democracia nacional revolucionária» — um achado. Nem américa, nem rússia, embora um tom mais vermelho aflorasse aqui e ali. Recordar a unidade guiné-cabo verde — dos povu, un kurason. Parece que alguma malta, deste lado, era contra. Deu no que deu. Lembrar que há quem pense que os santiaguenses são cafres, embora ninguém se tenha lembrado de propor a criação duma nova libéria. Nas escolas, formação militante. Recordar a pioneiragem. Era ótima para engatar miúdas, mesmo para um desastrado como eu. Num país onde o solo arável é escasso, tenta-se a reforma agrária. Posse útil da terra. Receios entre a população mal-esclarecida. Agitação em santo antão, aproveitada por alguns caciques de ontem. Envia-se o exército. Há mortos. Uma insensatez.

Recordar a irrupção do funaná na cena musical urbana — n buli mundu, n buli, n buli. Loas a Carlos Alberto Martins, Katxás. Kodé di Dona. Txada son fransisku. Febri funaná. Kwame Kondé korda kauberdi. As primeiras leituras de autores caboverdianos — maus como a potassa. Citar Arménio Vieira e João Vário, como desgarrados do rebanho. Impera o calão neo-realeiro, via certo caliban. Síndroma do negro greco-latino. Relativa deslocação do centro de gravidade cultural. Relativa liberdade aos criadores. Não há nenhum proponente a Jdanov. Umas eleições para macaco ver. Votações albanesas. Lá fora, dizem que por cá tudo bem. Cá dentro, a malta entretém-se com farra e futebol. Lembrar que falta o terceiro efe.

2. 

Imagens já não tão distantes — um grupo numa fotografia à porta de um liceu, dos dois únicos existentes no país. Acesso quase universal. Este que vos fala, ao lado duma colega que à mãe, na estranja, diz ser namorada — grande aldrabão. Um mestre de geografia que dizem ser reaças como o raio. Gostava muito dele. Dizer que não dava abébias. Chumbava todos os nabos. Mas isso era num outro tempo, antes da chegada dessa trupe adepta do borlismo intitulada pedagogos. Fundação, com um grupo de colegas, duma folha a que pomposamente chamámos revista. Textos abaixo de cão. Mas, como sempre, a malta exultou. Desse grupo, por atávica falta de sensatez, apenas esse vosso servo porfiou. Vingou? Só o tempo, esse verdugo, o dirá.

3. 

Imagens agora mais nítidas. Na estranja, capital do antigo império, com uma das últimas bolsas de estudo gratuitas. Tempos de estúrdia e escrita. Poucas notícias da pátria distante. Primeiras eleições livres multipartidárias. O pai levou uma banhada. Os vencedores parecem não saber o que fazer com a vitória. Desmantelamento do setor empresarial do estado. Dizer que foi uma teta para muito menino sabido. Passa-se uma década. Alternância no poder. Mortos que votam. Vivos que o fazem dúzia de vezes. Pela televisão, parece que está iminente uma guerra civil. Mas, das areias da pátria, sossegam-me: é só goela de político. O povo, esse é sereno. É só fumaça, diria certo almirante. Outubro continua a ser o mês da bênção ou da maldição, mesmo se já não somos os flagelados do vento leste.
Pátria minha, meu orgulho, minha danação.

Lisboa, junho 2005

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Redação