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Pátria soletrada à vista do Harmatão — IV
Cultura

Pátria soletrada à vista do Harmatão — IV

S. FILIPE

Eis a que dorme amodorrada sobre o mar. E se assobrada impertinente e imperturbável sobre fonte bila, bebendo nos pontes longes recados das américas.

Fundonzinho é recordação que cresce quando se calam os tambores de um maio extemporâneo e rendilha-se na calçada áspera o som das cavalhadas, o reverberar alto das orações, tal conveniente preito que arrasta numa harmonia dorida a visão que suaviza os lábios secos de quem só bebeu, nas missivas irregulares, o júbilo e as luzes duma américa tão distante.

                                                 * * *

Cantemos, ó voz, a flor crescente e a mágoa que derrama docemente, e é sina de quem cresceu entre preces, enredado nas teias da promissão. E se um rosto te encanta, lembra-te que és estrangeiro e peregrino foge de tal loucura, ou procura o apaziguamento no bulício do mercado, entre mangas e anonas, mesmo se verdes demais para a tua pressa de criança, ou para o desejo que é serpente que desliza entre fímbrias, ou nas vielas sem nome onde não há ferro que se oculte ou vergonha que te calará.

             * * *

Estendes as mãos com a bandeira do império, e é o rumor de um talaia-baxu que se surpreende na brandura do tédio, ou no ímpeto desmesurado que acendem as tuas mulheres quando rondam, feridas flores da embriaguez, o touro aquietado nos labirintos duma vida alevantada longe dos pilares da virtude.

Triste é agora o dobrar dos violinos, ó rainha canizade, triste a coreografia das coladeiras que perguntam se tornarás aos botequins de outrora, aos quintais dos alforriados, ao balbucio das fontes antes das águas de todas as promessas, porque sábio é aquele que ensina que só o que conhece as perguntas por desvendar vislumbra o rosto ignoto do futuro.

                                        *     *     *

No paredão do farolim de S. Pedro (amurada larga donde imagino os rugosos contrafortes que te dão o nome brava, ó ilha) tento descortinar, esgaçando a bruma, o teu bravio perfil, as vagas rendilhadas numa doce saudade. No presídio, onde o sol alto e muito forte é língua onde se condensa a récita da distância, as diatribes dessa mulher que cheirava a velhice na sua magreza sem adornos, nas imprecações que rolam praça abaixo, tais sentenças que encornam a fronte dos deuses, ou são esse olor de doridas vidas que em toda a parte encontro envoltas em véus de dignidade, em súbitas iluminações, por nocturnos passeios, que, por secretos, carregam-me duma alegria intacta, assombram-me como cem fantasmas antes da manhã da revelação.

Havemos de descer a fonte bila, enterrar os pés nas suas grossas areias que me levam às praias da minha meninência (cadjau, prasabel, dianti kasa, portinhu, rau koku) nesse chão bom de antanho e seu calmoso mar, destino das minhas terrenas cinzas quando o espírito partir para a eternidade das estrelas.

Mas agora é aqui que lavo do corpo a chaga dos desatinos e a crosta das servidões mergulhando os pés na água, perscrutando vale cavaleiros à distância de um aceno, blasfemando contra tão matreiros deuses que me prendem à cidade soalheira, à sombra do mais alto pico, esse que concede bênçãos e maldições, e na aura íngreme que lhe vela a face diz-me da loucura de fazer-me aos desígnios que os homens temem e os poetas apenas afrontam com a pólvora da palavra.

Que posso eu, incréu, segredar aos que se não desapegam do céu das suas miragens, mas comovem-se do meu destino de açoitar ventos, à espera da bonança que me levasse ao colo da ilha derradeira onde filhas festejarão o dia primeiro de vivos e idos?

Sei de povoados além, das suas fronteiras agora ocultas, mas quem desvelará as rotas para ti, ó djabraba, eu que entardeço nesta praia sul, nesta amplidão de saudade e salmora, e sigo o vento sua punção arrebatada, mas nem assim se me desvelam os véus onde agonizas, ó encantada?

Subo a estrada de pedras, escutando a ressaca que não se apieda da minha ânsia da ilha em frente. Teimoso batel enfuna-se pela rebentação, e eu aceno da minha distraída tristeza para esses que desafiam o destino, condenados a labutar no mar, a rolar entre os dedos da sorte, já sem forças para fugas, porque natural a morte pela água nos baixios escondidos, ou nas furnas que bem adivinho pela espiral que some na forma invariável dum bailado sem sossego.

                                                      *     *     *

Arrebata-me, arco-íris, e, como num sonho infantil, deposita-me às portas dos meu maiores: nossa senhora do monte, figueiral, labadura, aguada.

São dez mil as mãos da lassidão agora que subo à frescura do hotel. Dez mil as mãos a arrebatarem-me para a repetição dos gestos, dez mil as vozes a afogarem-me num tumulto libertador, mas o meu gesto é de desafio à ilusão do conforto, um confronto de afectos que me empurram sem remissão para os palcos da palavra, para a flagelação e o suplício, sem mundo a que me suster senão o ardor que me consome, envergonhado do terror que me devolve à mais humilde das condições.

E é pois, tal a criança temerosa de outrora, que entro no poema, dividido entre a aceitação e o enfrentamento, entre a humildade e a altivez, e, por algum imperscrutável desígnio, mergulhado num sossego que entendo frutífera possibilidade de aproximação ao segredo e à graça, na imperturbabilidade felina em que a luz desliza agora caminho da última escarpa, entre a fumaça distraída e o branco cemitério dos grandes de antanho.

Recito a minha submissão a esse desígnio humilde, e entro no poema como se profanasse o alto silêncio duma soberba catedral, qual se a língua que manejo desvestisse o segredo inaugural, mas volvo a cabeça e é uma luz quebradiça que me apazigua as dúvidas de oficiante a rasgar as primeiras letras sobre o rosto desta cidade, tiro de partida que me não ensurdece para o seu alto apaziguado rumor, e a dúvida se o que me espera é o inferno do fracasso ou os setes pilares que escoram a sabedoria.

S. Filipe, novembro 2019.

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Redação