Uma marretada no Estado de Direito
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Uma marretada no Estado de Direito

Num país pequeno como Cabo Verde, a justiça não pode ignorar o impacto simbólico e político das suas ações. Um aparato policial com armas de guerra, tratando uma edilidade como se fosse uma associação criminosa, não é neutro. Intimida, condiciona e pré-condena no espaço público antes de qualquer julgamento.

As recentes buscas efetuadas à Câmara Municipal da Praia (CMP) pelo Ministério Público levantam sérias, legítimas e inquietantes interrogações sobre os limites da atuação das autoridades judiciárias num Estado de Direito democrático.

Segundo informações tornadas públicas, o mandado de busca emitido no âmbito do processo em causa fazia referência à Direção Financeira e Patrimonial da CMP, situada na Fazenda. Ainda assim, a intervenção policial estendeu-se aos Paços do Concelho, envolvendo o arrombamento do portão principal e da janela da casa de banho do presidente da Câmara, com recurso à força, marretas e um aparato policial digno de operações contra organizações criminosas de elevada periculosidade.

Trata-se de um facto de extrema gravidade.

Num Estado de Direito, a legalidade dos meios é tão importante quanto os fins. A ausência de um mandado judicial que autorize buscas nos Paços do Concelho — espaço institucional, simbólico e politicamente sensível — torna a ação manifestamente desproporcional e potencialmente ilegal. Provas eventualmente recolhidas nessas circunstâncias correm sério risco de serem consideradas nulas, por terem sido obtidas de forma escandalosamente irregular.

Mais grave ainda é o precedente que se abre: permitir que o Ministério Público invada instalações de órgãos autárquicos sem mandado judicial específico é conferir-lhe uma liberdade de atuação incompatível com os princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e da reserva de juiz.

O cenário torna-se ainda mais perturbador quando se constata que a CMP já havia sido alvo de buscas anteriores, igualmente conduzidas pelo mesmo procurador. A repetição, aliada à forma ostensiva e intimidatória da operação, alimenta a perceção — justa ou injusta, mas politicamente real — de que existe um objetivo que extravasa a investigação criminal: o desgaste político do presidente da Câmara, Francisco Carvalho, potencial candidato a primeiro-ministro nas próximas eleições legislativas.

Num país pequeno como Cabo Verde, a justiça não pode ignorar o impacto simbólico e político das suas ações. Um aparato policial com armas de guerra, tratando uma edilidade como se fosse uma associação criminosa, não é neutro. Intimida, condiciona e pré-condena no espaço público antes de qualquer julgamento.

Igualmente reprovável foi a decisão de encerrar serviços municipais essenciais — jardins infantis, saneamento, mercado — com cidadãos no seu interior. A privação da liberdade, quando não determinada por autoridade competente e fora dos estritos termos da lei, está fora de lógica. Não pode ser relativizada nem justificada por excessos de zelo investigativo.

Mas tenho de admitir que muito mais grave foi a ação que a despoletou: uma violenta invasão do MP, com recurso a marreta e armas de guerra, à sede do município no Plateau sem mandado de busca, sem aval de nenhum juiz. Completamente fora-da-lei. Essa desproporcionalidade agrava todo o cenário, por mais que haja interesse imperativo para se aceder a documentos ou seja lá que mais como prova de crimes. Sem mandado, o MP fez ultrapassagem pela direita numa estrada de dois sentidos.

Tudo isto ocorre num contexto em que a Procuradoria-Geral da República já vinha sendo criticada por interpretações criativas da legalidade, como no caso que levou o deputado Amadeu Oliveira a julgamento. A sensação de que a lei é moldada conforme os alvos — e não aplicada de forma uniforme — fragiliza perigosamente a confiança dos cidadãos na justiça.

Causa particular perplexidade o apoio público da associação sindical dos magistrados a uma atuação que, no mínimo, deveria merecer prudência e reserva. Defender o arrombamento de instalações municipais sem respaldo judicial é alinhar-se com um espetáculo institucional que em nada dignifica a magistratura.

Os discursos exaltados que se seguiram nas redes sociais e no espaço público são, em grande medida, proporcionais à gravidade dos acontecimentos que os desencadearam. Ainda assim, impõe-se contenção. As instituições são maiores do que os seus dirigentes transitórios. Devem ser preservadas, não instrumentalizadas.

Defender o Estado de Direito não é afrontar órgãos de soberania. Pelo contrário: é exigir que atuem dentro dos limites que a Constituição lhes impõe. Democracia não se consolida com aríetes, marretas e intimidação, mas com legalidade, proporcionalidade e respeito pelos direitos fundamentais.

O que está em causa não é a imunidade de ninguém à investigação criminal. É algo bem mais sério: saber se queremos um Ministério Público forte, sim, mas constitucionalmente contido — ou um poder sem freios, capaz de fazer “o que lhe der na telha”. Esse é o verdadeiro julgamento que Cabo Verde enfrenta.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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