
...o “governo-sombra”, será apenas isso: sombra. Sem luz, sem corpo, sem futuro. Se quer ser levado a sério, que abandone a ilusão das formas vazias e mergulhe na humildade do trabalho substantivo. Que estude. Que estude muito, os problemas reais do país. Que converse. Que converse muito mesmo e com todos. Que ouça. Que ouça muito mesmo, os sonhos e as inspirações dos cabo-verdianos. E que, a partir daí, aprenda que na política, ao contrário das fábulas, não são as rãs inchadas que conquistam respeito, mas as vozes sábias que sabem onde, quando e porquê cantar. Que os vírus da humildade, reforma estrutural e a modernização progressista protejam a UCID das próximas eleições de 2026, e que possam merecer graça aos olhos dos cabo-verdianos - preencher as cadeiras invisíveis das sombras, como comichões que não causam irritabilidade.
Anunciou-se, com a solenidade de quem descobre um manuscrito iluminado numa era digital, que a UCID, partido que transformou a longevidade em património e a moderação em invisibilidade, formaria o primeiro “governo-sombra” da história política cabo-verdiana. Na forma, o gesto aparenta modernização e robustez democrática; no conteúdo, porém, revela-se um sintoma de ilusão institucional: acreditar que se pode transplantar um mecanismo sem possuir o organismo é o mesmo que importar a sombra sem ter o corpo que a projeta.
Ora, o governo-sombra é uma criação típica de democracias parlamentares consolidadas, onde a oposição não é mera retórica, mas função de Estado. No Reino Unido, por exemplo, o Shadow Cabinet é expressão de um equilíbrio de poderes sedimentado ao longo de séculos; na Alemanha, a Regierung in Wartestellung pressupõe um Bundestag funcional, em que a distância entre maioria e oposição é medida em pontos percentuais, não em abismos de relevância. Como escreveu o constitucionalista Karl Loewenstein, a democracia exige não apenas instituições formais, mas uma “cultura de contenção” — o autocontrolo dos atores políticos que respeitam as regras mesmo quando lhes são desfavoráveis. A UCID, porém, nunca precisou de contenção: foi contida pela irrelevância.
A impaciência desta organização com o calendário eleitoral à esquina, não é de alternativa, mas de alquimia política: transformar uma presença parlamentar residual, pressionada pelo tempo, em substância política através de um ritual institucional. Trata-se de um erro compreensível — a frustração da incerteza em manter ou perder cadeiras invisíveis. Se não, em sistemas bipolares consolidados, como o nosso, moldado pela alternância hegemónica entre PAICV e o MPD, partidos menores sobrevivem apenas pela diferenciação aguda, e não pela mímica de rituais alheios.
Se recuarmos a Robert Harmel e Lars Svåsand, na teoria dos nichos políticos, aprendemos que partidos novos — ou, no caso da UCID, velhos mas infantilizados pela inércia — devem optar por uma causa: ser partidos de ideologia clara, de protesto mobilizador ou de clientela definida. O proponente do “governo-sombra”, contudo, recusou-se a ser qualquer um desses. Não é um partido regional explícito (não se assume, apesar das evidências), não é partido de protesto, não é partido de clientela (talvez sim, de amigos, garantindo as suas reformas). É um partido de presença — e presença, sem projeto, é apenas um lugar vazio ocupado.
Essa tentativa desastrada de “governo-sombra” lembra a fábula de La Fontaine sobre a rã que quis inflar-se para parecer um boi: o esforço é visível, o resultado é trágico-cómico. Nos média, na sociedade civil ou no parlamento, ninguém vê na UCID uma alternativa de governo. Como diria Pierre Bourdieu, falta-lhe o capital simbólico necessário para que o gesto seja crível. A sua sombra é, portanto, uma sombra sem objeto — um vazio que se autoproclama forma.
Já que gostamos dos melhores exemplos, no modelo britânico o ministro-sombra dispõe de equipa, orçamento e acesso à informação do Estado. O que oferece a UCID? Uma lista com alguns nomes (com exceção de três ou quatro com autoridade académica, mas ainda assim, sem experiência governativa), que raramente transcendem o debate local, que nem nas próprias comunidades (ilhas) são reconhecidos, sem propostas nacionais estruturadas, sem capacidade de fiscalização técnica efetiva, sem tração mediática, gente que nem um mínimo de conhecimento da estrutura e o funcionamento do Estado detém. É um simulacro de seriedade, para usar a expressão de Jean Baudrillard: uma cópia sem original, um gesto que remete apenas a si mesmo.
Do anúncio pomposo restou a velha fábula: a montanha pariu um rato. Seguiu-se um silêncio nacional. Ninguém quis debater; os jornalistas não quiseram perguntar; os pares políticos não dedicaram uma única linha ao assunto; e o governo, talvez, nem sabe que tem um “governo” a assombrá-lo. É o veredicto de um país que, nas palavras de um politólogo amigo cabo-verdiano, “aprendeu a distinguir entre ruído político e competência política”. A UCID confundiu sobrevivência com relevância. Sobreviveu à sombra de um “bipolarismo” tolerante a figurantes; mas relevância exige protagonismo, e protagonismo exige risco, conflito e clareza ideológica.
Se quisessem, de facto, ser sombra do poder, a UCID teria de escolher: tornar-se a voz intransigente e defensora radical de, pelo menos, uma causa nacional, não na encenação de um poder que não se almeja ou não se pode atingir. Em vez disso, optou pelo cartão-de-visita institucional — sem endereço real, sem impacto concreto. Este gesto é, no fundo, sintoma de uma doença democrática mais ampla: a dificuldade de partidos menores em conceber uma função de oposição que não seja a mera pantomima de um “governo em espera”.
Por isso, a questão não é a utilidade ou não do governo-sombra em Cabo Verde, ademais sempre tivemos um governo-sombra — MPD e o PAICV, sempre foram sobras um do outro. É mais profunda: a UCID ainda é um partido político ou transformou-se num arquivo histórico de si mesma? Um partido que não disputa poder, não mobiliza paixões e não altera agendas é um fantasma na máquina democrática. E fantasmas, mesmo vestidos de ministros, não governam: assombram.
Até lá, o “governo-sombra”, será apenas isso: sombra. Sem luz, sem corpo, sem futuro. Se quer ser levado a sério, que abandone a ilusão das formas vazias e mergulhe na humildade do trabalho substantivo. Que estude. Que estude muito, os problemas reais do país. Que converse. Que converse muito mesmo e com todos. Que ouça. Que ouça muito mesmo, os sonhos e as inspirações dos cabo-verdianos. E que, a partir daí, aprenda que na política, ao contrário das fábulas, não são as rãs inchadas que conquistam respeito, mas as vozes sábias que sabem onde, quando e porquê cantar.
Que os vírus da humildade, reforma estrutural e a modernização progressista protejam a UCID das próximas eleições de 2026, e que possam merecer graça aos olhos dos cabo-verdianos - preencher as cadeiras invisíveis das sombras, como comichões que não causam irritabilidade.
Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
Inicie sessão ou registe-se para comentar.
Comentários