Escrevo a segunda parte desta crónica no dia 25 de abril, o dia das liberdades. Um marco mui impulsionado pelos aguerridos combatentes das matas da Guiné e sob a liderança insofismavelmente genial do Eng. Amílcar Lopes Cabral. Este que tinha como indefetível braço-direito um outro polido diplomata e homem de estado, o primevo presidente da nossa terra, Aristides Maria Pereira. Um nativo da fabulosa ilha da Boa Vista e com metade de ancoradouro familiar em fecundo São Miguel de magno Santiago. Uma data cabrestantemente prodigiosa e que devia ser feriado em todos os Países da Língua Oficial Portuguesa. Pode vir um dia a ser, se a CPLP decidir nesse sentido. Certo que o Brasil não tem nada a ver com ela. Não obstante isso, num rasgo de fraternal solidariedade, pode associar a sua pujança territorial e populacional à estrosa causa. Aproveito o ensejo para exteriorizar uma declaração de princípio, aqui e agora: não faço política partidária, não ando em campanha e não sou candidato a coisa nenhuma. Escrevo sobre as valorosas entidades do nosso país para não perder o rasto daquilo que é essencial e ficar alheio aos azimutes de presteza.
Quer as exímias sumidades sejam do mundo da ciência ou da cultura, da política ou das artes, da moda ou entretenimento. Para mim, a diferença é rigorosamente zero. Eu vejo o país no seu todo e na minha gesta não cabe a coloração que não seja a de bandeira nacional. Por isso, venho a este jornal (chamemo-lo forum da democracia e cidadania), apenas para ecoar a minha voz, para protestar e clamar por uma outra atitude dos dirigentes do nosso torrão, no atendimento que devem dispensar às pessoas que os procuram. Naquilo que me toca e certamente no que tange a todos aqueles com quem partilho estas altruistas preocupações, o que importa é estar imbuido do espírito de luta e de boa fé, para ajudar a aperfeiçoar a democracia cabo-verdiana. Bater-me pelo direito de que cada cidadão deve ser ouvido no que lhe disser respeito, porque isto é da mais elementar justiça. Quando falamos do tão precioso bem, estamos a invocar um dos requisitos primaciais para o funcionamento equilbrado de qualquer sociedade. A justiça é a quintessência de todas as virtudes humanas.
Aquela que vale a pena cultivar, para motivar a conduta valiosa de cada cidadania engajada e esclarecida. Não só enquanto mestria ou encargo de dirimir os conflitos na barra dos tribunais, de que os jornais estão repletos de resmungos e denúncias ou até de bombásticas tiradas, nos últimos anos. Basta ver os contundentes posicionamentos do Dr. Amadeu Oliveira e do seu saudoso amigo e ex-companheiro de trincheira, Dr. Felisberto Vieira Lopes. Tais detonações dos ilustres causídicos tiveram eco, provocaram um tremendo impacto na comunidade nacional e abalaram a credibilidade do sistema em causa. Isto permite-nos intuir que alguma coisa pode ter estado a falhar. Não ando por dentro desses processos e seria altamente imprudente da minha parte emitir qualquer juízo de valor acerca deles. Posso dar a minha modesta opinião, de uma forma abrangente sobre a justiça, se me aparecer uma soberana oportunidade. Por enquanto, aqui me proponho abordá-la, nas suas múltiplas dimensões, nomeadamente, política, legislativa e administrativa.
Então, ao contrário daquilo que disse, na primeira parte, afirmando que não estava com pachorra para criticar a ausência de uma certa medida contingencial, hoje vou tecer umas breves considerações, num tom um pouco mais acre que o habitual, só para trazer à baila alguns elementos de comparação, entre as formas de agir dos antigos e dos modernos. Em 1975, ainda no fulgor da revolução de abril e da independência nacional, no calor das emoções e daquela balbúrdia toda, em que se discutia se os rendeiros deviam partilhar os réditos da terra com os seus proprietários, aconteceu uma coisa verdadeiramente louvável. Um camponês, lá da minha zona, passava por uma gritante aflição, porque os landgrávios locais do partido, os mais afoitamente apaixonados, instruiram-no no sentido de não dividir os produtos da lavoura com o morgado, seu amo e seu amigo de largos anos. Então, o honesto cidadão micaelense, não sabendo bem o que fazer, diante daquela tamanha pressão da época, com acerbado fanatismo à mistura, levantou-se do chão e “apelou para Roma”.
Ou seja, apanhou uma camioneta e desembarcou na cidade da Praia. Indo diretamente para o gabinete do Primeiro-ministro, na altura, o comandante de brigada, Pedro Verona Rodrigues Pires, que capitaneava os destinos do executivo. Este recebeu o pobre campesino no mesmo dia e sem marcação de audiência prévia. Depois de escutar atentamente as lamúrias do homem do campo, que vivia um tremendo conflito moral, porque queria manter-se leal ao dono das terras, respeitando a tradição e os bons costumes, os valores ancestrais da sua ilha de berço, dividindo com ele o muito que havia dado nesse faustoso ano em referência. Segundo o próprio nos contou, aquando do seu regresso à base, o já mencionado dignitário o terá recebido com todo o agrado e nobreza institucional, para o elucidar a respeito da questão, esclarecendo alguns equívocos, da seguinte maneira: - «Isto de partilhar ou não depende da colaboração entre o morgado e o rendeiro». O coitado do “interiorenho” caiu no sossego, voltou aliviado e determinado a fazer aquilo que sempre havia feito, por décadas a eito.
Isto é, a ratear a colheita, meio a meio, com o mais velho, o patrão da seara e seu vizinho de todas as horas. Hoje, transcorridos quase quarenta e cinco anos sobre a data da nossa livre-decisão, encontramos dirigentes políticos e diretores de seriviço, vaidosos, sem estofo ou bússola moral, que não recebem os seus patrícios, por nada deste mundo. E qualquer poderzinho de meia tigela exige marcação de audiência, para se chegar à fala com o responsável. Audiência que, na mor das vezes, nunca sai da agenda. E pior: de há um tempo para cá, alguns advogados queixam-se da hercúlea dificuldade que experimentam, quando solicitam informações junto dos responsáveis políticos e administrativos, sobre assuntos dos seus mandatários ou pretendam reunir-se com esses dirigentes, a fim de desbloquear uma situação pontual dos seus clientes. E isso no exercício de uma profissão, não só legal, como absolutamente inprescindível para a realização do estado de direito, porque minuciosamente regulamentada. Uma vergonha e uma tristeza para um país dito democrático.
Os de outrora, apesar de todas as incongruências do partido único, eram, ainda assim, entidades merecedoras de intrépido respeito. Uma nata de gente bem intencionada e comprometida com os ideais de fraternidade que, quando se abeirava dos seus locais de ofício, sentia-se uma aura de notabilidade, sem dúvida nenhuma. Porque se tinham preparado para o exercício dos respetivos cargos? Porque interiorizaram em devido tempo o significado da palavra estado ou o conteúdo da realização do bem comum? Não sei, mas o certo é que eram, de longe, mais ponderados e atenciosos, no tratamento que devotavam aos seus patrícios, quando os procuravam. Lembro-me, tal que agora mesmo, como tinha ficado agradavelmente impressionado com a probidade de modos do também lendário combatente da liberdade da pátria, o primeiro-comandante, Agnelo Dantas Pereira, quando me recebeu no seu gabinete, para tratar de um assunto do meu interesse. Mesmo hodiernamente, um indivíduo chega ao pé de alguns desses colossos da nação crioula, sente-se ungido de uma sensação diferente, porque consegue compenetrar-se e participar de um magnetismo da espécie de cumplicidade identitária, mui à moda de uma genuina cabo-verdianidade.
Havia uma idealidade que presidia a ação dos arautos do Estado de Cabo Verde. Os emblemáticos da primeira leva eram precursores da república, com uma visão holística da nação e, por isso, individualidades de outra sépia e envergadura. No desempenho das suas funções públicas, os aurorais da fenomenal reviravolta cultivavam o seu vincado patriotismo e um estilo peculiar de escutar pacientemente o cidadão. Hoje, temos alguns dirigentes do azafamado “fáxi-fáxi e fait divers”. Sem tempo para prestar atenção, ouvir e decidir bem, com justeza e parcimónia. Os primórdios e vultos cimeiros da independência tinham uma postura inconfundívelmente melhor que certos serôdios da causa pública, que passamos a ter com o advento da vangloriada democracia, deixando bastante a desejar. Apenas folia e pompa, pouca substância. Quando se espreme o bojo de bazófia, nada sai. Só exótica balofa. Por isso, eu digo: precisamos de modéstia, como de pão a pôr na boca (continua).
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