Ninguém consegue controlar a Binter Cabo Verde... Porquê?...
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Ninguém consegue controlar a Binter Cabo Verde... Porquê?...

Um acordo entre a Binter Canárias e a Binter Cabo Verde, celebrado à margem da lei e dos princípios e regulamentos da aeronáutica civil, é visto pela DNRE e a AAC como uma porta para fuga ao fisco e transferência de capital para o exterior. Trata-se do acordo de franquia, ou franchising, wet leasing e serviços de apoio firmado entre as duas Binters e que colocaram a Binter Cabo Verde fora de qualquer controlo a nível nacional.

Um relatório elaborado por duas importantes instituições nacionais – Direção Nacional de Receitas do Estado (DNRE) e Agência de Aviação Civil (AAC) – sobre o funcionamento da Binter Cabo Verde, a que Santiago Magazine teve acesso, dá conta que, até este momento, ninguém tem conseguido controlar esta companhia aérea, licenciada para explorar, em regime de monopólio, os voos domésticos no país.

“A operadora apresenta problemas correntes, quer do lado dos gastos, quer do lado dos rendimentos, inviabilizando qualquer controlo, quer da AAC no que toca à análise de rendibilidade e regulação das tarifas, quer da administração fiscal no que concerne ao controlo do rendimento tributável”, lê-se num dos pontos da conclusão do referido documento, rubricado por José Monteiro, Daniel Silva e Ana Cardoso, da DNRE, e Silvino Fortes e Arlindo Borja, da AAC/ARE.

O que é que se passa? Porquê que não se consegue controlar a Binter Cabo Verde? O relatório, que se debruça sobre os anos 2016, 2017 e 2018, dá respostas a estas questões, deixando claro que a operadora não respeita as leis, as decisões da AAC e nem mesmo as recomendações da administração fiscal, com quem tem se reunido algumas vezes.

A primeira explicação está no facto de a operadora contratar a generalidade dos serviços às empresas do mesmo grupo, com sede em Canárias, o que aumenta o risco fiscal e reduz drasticamente a estrutura de custos em Cabo Verde. A título de exemplo, o relatório regista que “efetivamente grande parte do custo total da Binter Cabo Verde, ou seja 49% no exercício económico de 2017 e 57% no de 2018, se referem a aquisições a empresas do grupo Binter e, portanto, sujeitos a serem influenciados por preços de transferência”.

Há aqui algum gato com o rabo de fora?

E, aqui chegado, o relatório começa a explicar as ocorrências a ver se se percebe o que eventualmente se esteja a tentar esconder com esses arranjos comerciais.

Vejamos: segundo o relatório, “a documentação de preços de transferência combina para análise 3 tipos de operações: franchising, wet leasing e serviços de apoio, o que não é usual”.

Se sobre as duas últimas operações – wet leasing e serviços de apoio – a situação parece ser razoável, já em relação ao franchising, ou franquia, a coisa muda de figura, e tudo aponta que aqui o gato terá deixado o rabo de fora. Porquê? Na aviação civil, o franchising, ou franquia, aplica-se habitualmente quando uma companhia proprietária de uma rota, cede a mesma rota a outras companhias, mediante o pagamento de uma taxa ou royalties.

Neste caso, existe um contrato entre as duas Binters - Cabo Verde e Canárias – em que a Binter Cabo Verde paga à Binter Canárias pela utilização do nome e conceito padrão da operadora espanhola, mais Royalty de 4,5% sobre cada bilhete emitido, a que se acrescenta ainda mais um cupão fixo de 35 euros por voo realizado.

Binter Canárias não tem rotas em Cabo Verde

Ora, a Binter Canárias não é proprietária de qualquer rota em Cabo Verde, pelo que não pode ceder a seja quem for algo que não lhe pertence. Por outro lado, mesmo que a Binter Canárias fosse proprietária da rota, jamais a Binter Cabo Verde aceitaria pagar taxas por uma rota deficitária, a crer nas demonstrações financeiras da própria operadora, que terá acusado perdas operacionais de aproximadamente 109 milhões de escudos em 2015, 510 milhões de escudos em 2016 e 850 milhões em 2017.

Há aqui um claro contrassenso ou falta de razoabilidade em relação a este contrato existente entre as duas Binters. Aliás, este problema, regista o relatório, que roça a ilegalidades, havia sido identificado pela AAC, desde a primeira hora, tendo esta agência de regulação recusado aprovar o contrato de franquia “Code-Share” entre Binter Cabo Verde e Binter Canárias.

Esta posição da AAC aconteceu ainda em 2016, ano que a Binter Cabo Verde começou a voar, e estriba-se nos seguintes fundamentos: a) os direitos de tráfego de cabotagem, ou doméstico, são reservados às companhias aéreas nacionais, licenciadas nos termos dos regulamentos nacionais; b) a Binter Canárias é uma companhia aérea estrangeira e não tem por isso direitos de tráfego de cabotagem, sendo que os seus códigos comerciais não podem ser utilizados para a comercialização de operações domésticas; c) os acordos de code-share só são permitidos entre duas companhias aéreas com os mesmos direitos de tráfego, o que não é o caso; d) as duas Binters podiam até efetuar arranjo para comercialização de bilhetes, mas nunca para utilização de códigos nas rotas onde não possuem direitos de tráfego; e) qualquer acordo comercial deve ser autorizado pela AAC, e este não foi autorizado.

Inspeção externa urgente

Todavia, apesar de a AAC ter recusado o contrato de franquia, a Binter Cabo Verde continuou a vender bilhetes utilizando o código da Binter Canárias e continuou a pagar taxas e cupões fixos à Binter Canárias. Os registos apontam que apenas nos anos de 2017 e 2018, os gastos com esses pagamentos atingiram o montante de mais de 225,5 milhões de escudos.

E, conclui o relatório, enquanto prevalecer este arranjo entre as duas Binters, nem a AAC nem a DRNE conseguirão qualquer controlo efetivo sobre os rendimentos da companhia Binter Cabo Verde.

Sobretudo no capítulo da venda de bilhetes, que continuam a ser comercializados com o código da Binter Canárias, “facto este que não permite acompanhar a série numérica do bilhete Binter Cabo Verde, levando a reserva significativa sobre o montante de bilhetes voados, uma vez que a empresa emite uma fatura global mensal de rendimentos”.

Assim, o relatório remarca que “a única forma de haver a certeza do rendimento da companhia é a emissão do bilhete utilizando o próprio prefixo da operadora Binter Cabo Verde, ou seja, accounting code 383” e não o 474 que pertence à Binter Canárias.

Por fim, o relatório pede uma inspeção externa urgente à empresa Binter Cabo Verde para analisar e corrigir os gastos registados nas demonstrações financeiras.

A partir de agora - o documento é de novembro de 2019 - a bola passou para o lado do governo de Cabo Verde.  Santiago Magazine vai tentar ouvir o titular da pasta dos transportes para manter os seus leitores esclarecidos sobre os próximos passos que deverão ser dados para corrigir eventuais falhas e estabelecer a ordem e o cumprimento da leis. 

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