
O artista cabo-verdiano Mário Lúcio sentiu a independência do país em “pequenos detalhes”, como assobiar na rua, os batuques no centro da vila, a imagem de negros nas fotografias e uma chuva de novas danças e sonoridades.
O músico e escritor tinha dez anos quando a liberdade chegou ao arquipélago e ao seu Tarrafal, na ilha de Santiago. Há muito que era reconhecido como um menino-prodígio, que surpreendia pelo talento e estava familiarizado com o campo de concentração e as habitações em seu redor.
Em entrevista à agência Lusa a propósito dos 50 anos da independência de Cabo Verde, em 05 de julho de 1975, Mário Lúcio recordou os sinais de mudança, como “a chuva de danças” e as sonoridades que chegavam ao arquipélago pelos militares que regressavam da guerra em Angola e na Guiné, com discos de músicas desses países e de outros.
O escritor não subscreve a ideia de que a descolonização portuguesa foi mal feita, por uma simples razão: “Não há descolonização mal feita, porque isso seria dizer que a colonização estava bem feita e não existe colonização bem feita; logo, qualquer processo de libertação é um processo ótimo”.
“No caso do Cabo Verde, o processo foi bom, mas a transição foi ainda melhor”, afirmou, sublinhando a inexistência de rituais de purgas após a independência, ou de radicalismos exacerbados.
Mário Lúcio acredita que a forma como o processo da independência nasceu e continuou em Cabo Verde se deve a Amílcar Cabral e ao legado que deixou, referindo-se ao líder africano como “um homem que deu a vida e lutou tanto e conseguiu também amortecer tantos radicalismos para que se chegasse com o mínimo de baixas e de condições que pudessem conduzir ao desenvolvimento”.
“Nós não nascemos do rancor, nascemos do dilema. Nós não nascemos da exclusão do outro, mas da inclusão”, disse, considerando que a ausência de guerra no território cabo-verdiano contribuiu para a forma como correu a consolidação da independência e depois da democracia.
Hoje, acredita que toda a força de Cabo Verde reside na sua estabilidade, na sua paz social, mas também na morabeza [a arte de bem receber], no respeito pelo outro, na força da palavra tolerância.
Sobre a relação entre cabo-verdianos e portugueses, considera que é de amizade, que tem a ver com a mesma língua, vários elementos culturais iguais, proximidade nas relações de trabalho”. Portugal é a porta de entrada dos cabo-verdianos na Europa e no mundo e “não há razões para inventar conflitos”, disse.
Reconheceu que, “de tempos a tempos, a história gere oportunistas, em que qualquer detalhe é manipulado a seu favor e, às vezes, tenta-se colocar uma instituição contra a outra ou uns povos contra os outros”.
Para Mário Lúcio, “não há sinais nenhuns de que haja mácula na relação entre Cabo Verde e Portugal e não há sinais de que haja desavenças ou desafetos entre portugueses e cabo-verdianos, no sentido geral, humanista e universalista do relacionamento”.
E sobre o crescimento da extrema-direita na Europa e também em Portugal, o multi-instrumentalista recorda o pensador chinês Confúcio, que disse que os políticos, quando adoecem, adoecem a nação e que quando estão sãos, passam essa sanidade à nação.
“Quando um político respeitado faz o discurso da união, o discurso do amor, a nação pratica esse discurso, ainda que haja indivíduos que, por sua fé, façam o contrário”, disse.
“Se em Cabo Verde, em 1975, Pedro Pires, o primeiro-ministro que fazia longos discursos para preparar mentalmente a nação, tivesse dito que a partir de segunda-feira, dia 06 de julho, morte aos portugueses, imagina o que seria do nosso país hoje”, referiu.
Mário Lúcio foi ministro da Cultura entre 2011 a 2016, depois de assumir funções como deputado municipal e mais tarde nacional. Não tem saudades da política e garante que nunca se irá candidatar a nada, como nunca o fez, tendo antes sido convidado a fazê-lo.
Contudo, afirma-se disposto a prestar um serviço ao seu país, fazendo política através da música ou liderando “um processo que faça as pessoas mais felizes”.
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