Gerson Lima, inspector chefe da Polícia da Judiciária, foi uma das principais testemunhas do processo tendo no seu depoimento colocado Paulo Rocha, actual ministro da Administração Interna, na cena da operação da Cidadela, em 2014, quando efectivos da PJ mataram com mais 26 tiros de AK-47 Zezito Denti d’Oru (foto), apontado como assassino a soldo e tido então como o principal suspeito do homicídio da mãe da inspectora Kátia Tavares. Mas num segundo depoimento, já com Nilton Moniz como instrutor da investigação, Lima recuou afirmando que na altura limitou-se a seguir uma narrativa do procurador Ary Varela, versão que terá sido crucial para o arquivamento do processo contra os agentes da PJ e, sobretudo, contra Paulo Rocha. Como não há duas sem três, o inspector veio depois derrubar o próprio desmentido ao dirigir uma exposição a diversas entidades – do PR ao PM – contando tudo o que sabia, ao mesmo tempo que solicitava a junção aos autos de uma gravação telefónica (que aqui reproduzimos) cujo interlocutor afirmou ser o coordenador da PJ, Natalino Correia, onde este parece intermediar um encontro secreto entre Lima e “alguém do Sistema” para, presumivelmente, o inspector mudar a sua versão acerca do que terá ocorrido de facto na Operação da Cidadela. Em troca de contrapartidas.
Enquadramento: em Maio de 2023, o Ministério Público deduziu acusação contra três inspectores da Polícia Judiciária, André Semedo, Gerson Lima e Jandir Reis, por “inserção de falsidade em documento público, violação do segredo de justiça e declarações falsas” prestadas ao procurador Ary Varela “de modo a incriminar, entre os demais agentes da judiciária, o então director adjunto da PJ e actual ministro da Administração Interna, Paulo Rocha”, na morte violenta de Zezito Denti d’Oru (foto em cima), suposto assassino por encomenda a serviço de barões da droga.
Os três inspectores eram as testemunhas-chave para o esclarecimento do caso, mas acabaram transformados em arguidos sob a acusação de “inserção de falsidade em documento público, violação do segredo de justiça e declarações falsas”, quando mencionaram o nome do actual ministro da Administração Interna.
Nesse despacho de acusação lê-se que Gerson Lima, que havia contado ao procurador Ary Varela que foi Paulo Rocha quem criou e liderou o Grupo de Operações Tácticas (GOT) da PJ, seis meses depois – já com um processo levantado contra si por envolvimento com o narcotráfico – veio negar perante o procurador Nilton Moniz, então chamado para pegar no dossier após o afastamento de Ary Varela pelo PGR, que tenha feito tais afirmações, acusando Varela de “inserir declarações que não verbalizou”.
Lima também afirmou nesse segundo interrogatório dirigido por Moniz, no dia 25 de Janeiro de 2022, que nunca disse ao procurador Ary Varela que Paulo Rocha tinha "delineado um plano para matar Zezito, mas sim que foi ele, Gerson Lima, que levou para à equipa a informação de que havia mais pessoas que constavam de uma lista para serem executadas, nomeadamente o Paulo Rocha, Carlos Almada, o então PGR, Júlio Martins, etc., por ordem dos arguidos da Lancha Voadora”.
Gerson Lima voltou atrás em relação ao depoimento feito em 2021 ao procurador Ary Varela de que durante a reunião de montagem da operação Cidadela, “o Paulo Rocha ordenou ao César Lopes para providenciar uma arma de fogo calibre grande Makarov para a encenação do crime”, explicando na ocasião que “numa ocasião fora do âmbito das reuniões que se realizavam naquela altura na PJ, ao passar no corredor ouviu o Paulo Rocha a dizer ao César Lopes as seguintes expressões: ‘nho nhu ta priokupa ku keston di arma’, sem qualquer alusão a nenhuma investigação ou operação em concreto”, razão pela qual, continua Lima, ele e Ary Varela concluíram que a arma Makarov foi implantada no local do crime.
O mesmo inspector refutou igualmente que disse na primeira audição que o Paulo Rocha encontrava-se no local da abordagem a Zezito Denti d’Oru, e sim que “ouviu o Paulo Rocha a dizer via rádio as seguintes expressões ‘alé viatura ta aproxima, pripara, aborda!’”. Por isso, o representante do MP titular do processo, Nilton Moniz, considerou falsas as declarações prestadas pelo inspector ao procurador Ary Varela, concluindo então pelo arquivamento do caso em Outubro de 2022.
“É o Estado, é Sistema, bo só bu ka podi"
O problema é que dois meses depois de ter sido interrogado por Nilton Moniz e de ter desmentido as próprias declarações feitas a Ary Varela, o próprio Gerson Lima, no dia 3 de Março de 2022, solicitou a junção aos autos de uma suposta conversa mantida por telefone alegadamente com o inspector Natalino Correia, onze dias antes do seu recuo, e onde percebe-se que estariam a combinar quais declarações deveria prestar ao Ministério Público, ao que tudo indica, em troca do arquivamento de um processo crime em que ele, Lima, é arguido por envolvimento com o narcotráfico, e ainda de um processo disciplinar que lhe fora movido em Julho de 2021.
Ouvir o áudio aqui:
Na verdade, nota-se certa pressão do seu interlocutor, que ele identificou como sendo o inspector e coordenador da PJ, Natalino Correia, para que Lima cedesse e aceitasse a proposta que, é certo, não fica claro do que se tratava na prática.
No áudio, a que Santiago Magazine teve acesso e que aqui reproduz, é perceptível o diálogo que em baixo transcrevemos tal qual Gerson Lima colocou no texto em que pede que esta conversa fosse ajuntada aos autos. Ou seja, apenas a fala que atribuiu a Natalino Correia.
«“No dia 14 de Janeiro de 2022 (18h38) - (dura 10 minutos a conversa entre o Coordenador Natalino e o inspetor Gerson)
Coordenador Natalino - "...inspetor obi li, analisa kusas ki kontisi na PJ, mas analisa bu flan, el é um situason gravi. kel direson la ka ta dura, ta kai jaja
Coordenador Natalino - "...E pa bu odja me sistema ki sa ta atua, e sistema ki sta por detrás disso (..)"
Coordenador Natalino: “abo bu sabi ma mi Paulo Rocha si n podeba el hum ta rabenta, ta pegaba el ku nha mó”
Coordenador Natalino - "pessoal bai la na PJ fazi busca por despacho de Dr. Landin, procurador geral da república, é o Estado, é Sistema (. .)
Coordenador Natalino - " Abo dja bu tem quase 20 anu di PJ, um di kes midjor ki nu ten, bu tem bu família, bu ka ta consigui enfrenta sistema bó só, bó é um gaju inteligente, portanto bu tem ki analisa kel situason li po ka perdi bus anus de servisu, pamodi é sistema e bu ka podi luta kontra sistema (...). Mas ten um forma di risolvi (...)".
Coordenador Natalino - "Mas resolvi o quê, nhu sta fazi referencia a kes kusas ki sai na jornal sobre nha declarason na caso Zezito Denti D’Oru?
Coordenador Natalino: " ya, mas alguén ki ta fazi parti di sistema ta bai ter di bó, ta explicou mo ki bu ta fase po disfazi di kel declarason, mas ko preokupa, é alguen sério ki ta ba ter di bo, ami djan sabi el é quenha, é ta bai nhos ta rosolvi tudu (...) bo é un gaju inteligenti, analisa, dicidi n ta fla pessoa ta ba ter de bó, moda n flau é pessoa serio (...)".»
Quem seria esse “alguém do sistema”? Pelo teor da conversa nota-se que não é ou não era Paulo Rocha, até porque o interlocutor de Gerson Lima detona o ex-diretor nacional adjunto da PJ quando disse que se pudesse o pegaria com as próprias mãos. Então fica por descortinar quem será o chefão, supostamente, acima de Rocha, que estava “mais interessado” em ilibar a Judiciária na morte de Zezito Denti d’Oru.
Na carta dirigida ao Presidente da República, Primeiro-ministro, ministra da Justiça, Provedor Justiça, Procurador-geral da República, Presidente da Assembleia Nacional, entre outros, a qual fez acompanhar um CD com o áudio aqui descrito, Gerson Lima afirmou que houve uma estratégia para primeiro o descredibilizar com um processo por ligação ao narcotráfico e depois com a suposta tentativa de o pressionar para dar o dito pelo não dito exigindo contrapartidas. “Do Sistema”.
Denúncia ao PR e PM
No dia 4 de Março, um dia depois de pedir a anexação da sua conversa com Natalino Correia aos autos, Gerson Lima fez chegar ao presidente da República, presidente da Assembleia Nacional, Primeiro-ministro, Ministra da Justiça e Provedor de Justiça documentos a partir dos quais revelava o seguinte: “outro motivo é que o referido inspector (ele, Gerson Lima) constitui uma testemunha fiel, honesta e verdadeira sobre as circunstâncias do linchamento de Zezito Denti d’Oru, numa operação superiormente planeada, dirigida e comandada pelo então director nacional adjunto da PJ, sr. Paulo Rocha, actual ministro da Administração Interna”.
Manuscrito da denúncia de Gerson Lima, excluído da investigação pela PGR
Ora, para o MP, no seu despacho de acusação contra os três inspectores da Judiciária, “ao revelar estes factos para o PR, PAN, PM, MJ e Provedor da Justiça, pessoas estranhas ao processo, o arguido (GL) violou o segredo de Justiça". Mas aqui o MP não fez qualquer referência se o inspector negou também o envio dos documentos a essas entidades ou se desmentiu essas mesmas informações partilhadas com o chefe de Estado ou com o chefe do Governo.
Seja como for, Gerson Lima acabaria por dar o dito por não dito no depoimento ao procurador Nilton Moniz que foi crucial para o arquivamento da investigação, mesmo tendo depois dado sinais de arrependimento e denunciado tudo às autoridades alegando ter sido pressionado para prestar falso testemunho. Ele deverá responder perante o Tribunal por autoria material de um crime de falsidade por parte de interveniente em acto processual e um crime de violação do segredo de justiça, este segundo, todavia, terá deixado de existir.
O processo de investigação à morte de Zezito Denti d’Oru foi arquivado em (sob alegação de legítima defesa) em Outubro de 2022 por Nilton Moniz, ilibando todos os elementos do Grupo de Operações Tácticas (GOT) da PJ que armaram a emboscada na Cidadela, para, acto contínuo, abrir um novo processo contra os três inspectores que foram formalmente acusados de adulterar dados de forma propositada para incriminar o ministro Paulo Rocha e outros seus colegas da Judiciária.
O processo contra Ary Varela, que liderou essa investigação de 2020 a 2021 até incluir o nome de Paulo Rocha entre os suspeitos, foi arquivado, mas o magistrado do Ministério Público não escaparia este ano de 2025 de nova acusação, desta feita, por violação do segredo de justiça. Varela foi alvo de buscas no escritório e na sua residência (12 de Janeiro de 2022). A seguir, a Procuradoria Geral da República, através do Departamento Central de Acção Penal (DCAP), ordenou o “desentranhamento de todas as diligências desencadeadas pelo procurador Ary Varela”, ou seja, Luis José Landim emitiu um despacho em que mandou excluir todos os dados recolhidos por Ary Varela no âmbito do processo Zezito Denti d'Oru, "uma forma subtil de se queimar arquivo e abafar de vez este escândalo”, conforme dissera na altura fonte de SM.
Recorde-se também que depois de Nilton Monz mandar arquivar o processo de investigação à morte de Cidadela, os familiares do malogrado Zezito, tido pela PJ como assassino a soldo e então suspeito de assassinar a mãe de uma inspectora da Judiciária em 2013, decidiram constituir uma equipa de advogados para reabrir o processo, pedindo de imediato uma ACP, à luz do artigo 325º do código do Processo Penal, e na qual além dos elementos da PJ que estiveram na cena do “crime”, consta o nome de Paulo Rocha, como arguido.
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Comentários
Casimiro Centeio, 30 de Set de 2025
Isso é diabólico !
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