Um país às arrecuas, ou coisa parecida
Colunista

Um país às arrecuas, ou coisa parecida

Começamos pela crise energética, onde ao pobre autor destas linhas fica difícil perceber quem levar a sério. E onde, em abono da verdade, este depauperado cronista (por muito que queira ser bonzinho) só poderá concluir pela inexistência de visão, de projecto e de uma clara linha de política pública energética. Passamos, de seguida, pela chamada Abertura-do-Ano-Judicial, aquele evento anual onde toda a gente, mais coisa menos coisa, repete sempre o que disse no ano anterior. E terminamos com um merecido panegírico ao ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, que tem marcado a sua passagem governativa pela sobriedade, o trabalho sério e empenhado, não se envolvendo em factoides ou na fatal vertigem da vaidade, rompendo com o estilo circense do seu antecessor.

Um passo em frente, dois atrás, parece ser a tendência do momento, embora conjunturalmente possa a tendência inverter-se, a confirmar o princípio de que a excepção confirma a regra. Ora, vamos lá à crise energética.

Primeiro, o PCA veio comprometer-se a resolver o problema logo na semana seguinte; imediatamente a seguir, o ministro veio dizer que não, que não se comprometia; mais adiante, o PCA volta à carga para dizer que a empresa decidiu alugar potência adicional para reforçar a Central Eléctrica do Palmarejo. No entanto, questionado sobre a empresa escolhida, disse que foi por concurso (com mais outras duas), escusando-se, contudo, a indicar o nome da vencedora. Aqui, por muito benevolentes que queiramos ser, a coisa já começa a cheirar mal. Adiante!

Opacidade aumenta a incredulidade pública

Ficamos a saber, em dose repetida (o ministro a isso já se havia referido, dias antes), da criação de uma comissão técnica independente para apurar as circunstâncias das reiteradas avarias. Não se conhece, porém, a sua composição, tão-pouco os critérios da sua constituição. O secretismo já começa a manifestar-se como maleita crónica, o que aumenta a incredulidade pública.

O PCA, questionado sobre as declarações de um deputado do alto escalão da Assembleia Nacional - que aludiu (com uma audaz certeza) haver sabotadores, sem, no entanto, apresentar qualquer prova -, passou ao largo não se comprometendo com o mundo paralelo do parlamentar, talvez por ser um pouquito mais inteligente e/ou temeroso.

Entre as várias estranhezas apresentadas no menu do PCA, houve outra que me chamou particular atenção: a EDEC, por via dos transtornos recentes, vai fazer um desconto de 20% nas facturas de electricidade, dividido em partes iguais por dois meses, outubro e novembro. Mas – esperem aí -, a sequência de apagões não foi em setembro? Não deveria o desconto ser integralmente aplicado na factura deste mês? Não, meus amigos e minhas amigas, isto é malta muito à frente, uma rapaziada muito criativa, até inventaram uma nova modalidade: os descontos a prestações.

Voltando à tal comissão técnica, caso seja algo de sério e, por exemplo, conclua que o problema está na suposta incompetência e descaso de quem manda, a avaliação é demolidora: confirma-se a existência de sabotadores, todos eles das administrações das EDEC’s, EPEC’s, Electra’s e quejandos (que com tantas mudanças de siglas e símbolos já lhes perdi a conta).

Universo paralelo e enfermidades psiquiátricas

Certamente – caro leitor e cara leitora -, chegados aqui, estão a perceber que, no meio de tantas contradições, recuos tácticos e ziguezagues estratégicos, seja difícil ao pobre autor destas linhas perceber quem levar a sério. E que, em abono da verdade, este depauperado cronista (por muito que queira ser bonzinho) só poderá concluir pela inexistência de visão, de projecto e de uma clara linha de política publica energética – o que torna ainda mais grave o problema.

E a preocupação cresce, na relação directa entre o caos energético e os acríticos batedores de palmas do dr. Ulisses, que se recusam a ver as evidências e, desalmadamente, mergulham no universo paralelo que entroniza o primeiro-ministro no altar dos deuses e procuram justificar os problemas com supostas conspirações de sabotadores, hordas de comunistas e filhos do demo que procuram macular a nossa democracia e colocar em frangalhos a pátria. É a outra face do problema, aqui já no terreno das enfermidades psiquiátricas.

E só pode, porquanto, muitos dos mais fanáticos prosélitos de Ulisses Correia e Silva eram, ainda pouco tempo atrás, convictos críticos e mesmo detractores do líder, não se contendo até em ultrapassar a fronteira do respeito pela dignidade da pessoa humana (e disso tenho dezenas de provas materiais – ai a minha memória e os meus arquivos).

Serão estes mesmos (não tenho dúvidas) que, na previsível queda do ainda primeiro-ministro, lhe espetarão céleres as primeiras facas nas costas para se atirarem aos despojos. E Ulisses sabe disso (não o tomem por parvo)!

Uma Justiça de classe

A última semana trouxe-nos, ainda, a chamada Abertura-do-Ano-Judicial, aquele evento anual para exibir togas e becas (ou coisa que o valha), onde toda a gente, mais coisa menos coisa, repete sempre o que disse no ano anterior (não querendo ser maldoso, estou quase em crer que aquela malta arrasta o mesmo discurso redigido por assessores, no mínimo, cinco anos atrás). E, confesso, como excepção a esta regra oratória (que não merece o mínimo de atenção para aí de 90 porcento da população), só vislumbrei o discurso do presidente da República, que foi mais além das narrativas politicamente correctas…

Poderia ter ido mais adiante, mas, convenhamos que se trata do chefe de Estado, assim uma espécie de pai da Nação que, compreensivelmente, se conteve de criar algum dissenso familiar, corroendo as frágeis cozeduras e acertos da República. De todo o modo, ainda assim, foi uma - embora leve - fragância de frescura.

Uma mentira repetida

A preocupação dominante dos oradores foi a de enfatizar a morosidade da Justiça, uma mentira repetida até à exaustão! Pelo contrário, a Justiça é sempre muito célere, nomeadamente, a meter na prisão determinado tipo de pessoas e, convenientemente, deixando de fora outras.

E há um mundo oculto para além dos muros das prisões, um mundo onde a iniquidade e o desrespeito pela pessoa humana é lei.

As prisões estão cheias de pobres, de excluídos sociais a quem, boa parte das vezes, não foi dada qualquer oportunidade. Numa sociedade onde a disparidade entre pobres e ricos assume níveis impensáveis, à luz de um mínimo resquício de justiça social, as prisões são um instrumento da guerra contra os pobres, os culpados convenientes, mas são também instrumento de vingança ausente de qualquer sentido elementar de justiça.

A ajudar à festa, temos um sistema judicial manifestamente ao serviço de ricos e poderosos (isto é, da classe dominante), que não se inibe de usar de mão pesada para a maioria e ser condescendente com a minoria dos que, servindo-se de uma suposta autoridade e/ou respeitabilidade, utiliza a lei e as regras sociais para praticar crimes, fazer negócios ilícitos às costas do Estado e, não raras vezes, abotoar-se a bens públicos.

Temos, ainda, uma Justiça que não respeita as vítimas (maioritariamente, também, pobres), nem garante o seu direito à reparação. Uma Justiça que trata criminosos e vítimas ao mesmo nível: não contam para nada! Nem o criminoso é recuperado para a sociedade, nem a vítima vê garantido o seu legítimo direito ao ressarcimento!

Na chamada Abertura-do-Ano-Judicial, à excepção do presidente da República, que lhe fez uma subtil alusão, não ouvi ninguém a falar daquilo que é fundamental: uma Justiça Justa.

Também há horas felizes

Mas, nem tudo é mau na semana que passou. Registo com agrado a elevação do Panu di Tera a Património Cultural Imaterial Nacional. E, com toda a justeza, gostaria ainda de sublinhar a postura do ministro da Cultura e das Indústrias Criativas.

Augusto Veiga (o “Gugas”, a quem a música cabo-verdiana tanto deve) tem marcado a sua passagem governativa pela sobriedade, o trabalho sério e empenhado, não se envolvendo em factoides ou na fatal vertigem da vaidade, rompendo com o estilo do seu antecessor que havia transformado o ministério num circo, e construído um percurso entre as birras constantes com agentes culturais e a desenfreada necessidade de protagonismo.

É a diferença entre quem faz, no inteligente silêncio dos adultos, e a infantil política-espectáculo de quem tem compulsiva necessidade de autocomplacência.     

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