
Afastar uma liderança vencedora às vésperas do maior desafio da história do futebol cabo-verdiano é impensável, extemporâneo e desprovido de qualquer sentido patriótico. A sociedade cabo-verdiana dificilmente compreenderá — ou apoiará — uma mudança que mais parece retirar o pão da bica a quem fez a massa, esperou a fermentação e levou o forno à temperatura certa. Mário Semedo é hoje uma figura respeitada internacionalmente, com redes, conhecimento e autoridade. Sabe a quem ligar, como entrar e como sair nos corredores do futebol mundial. Não se improvisa liderança deste nível em meses.
Cabo Verde vive um dos momentos mais altos da sua história desportiva. Pela primeira vez, a seleção nacional de futebol garantiu, no campo e com mérito inequívoco, o apuramento para um Campeonato do Mundo. Não é um detalhe. É um marco histórico, civilizacional até, num país onde o futebol é mais do que jogo: é identidade, orgulho e projeção internacional.
No centro deste feito está Mário Semedo, atual presidente da Federação Cabo-verdiana de Futebol (FCF). Pela via da boa gestão, da organização administrativa e de uma liderança experimentada, conseguiu o que durante décadas pareceu um sonho distante: colocar os Tubarões Azuis na maior montra do futebol mundial, o Mundial de 2026.
Este feito não surge do acaso. Surge de uma estrutura federativa que, hoje, é provavelmente uma das mais organizadas do país. Uma federação que pensa, planeia e executa. Uma federação que, no mesmo ano, conseguiu ainda estruturar o futebol feminino ao ponto de garantir o apuramento para a CAN feminina — outro avanço histórico. Ah, e há o galardão atribuído ao selecionador nacional, Bubista, como Técnico Africano do Ano, o que, como é óbvio, conquistou porque os jogadores o ajudaram e a direção da FCF lhe lhe facultou as condições mínimas e máximas para trabalhar com dignidade.
Convém lembrar: no Mundial do Brasil, Cabo Verde conquistou dentro das quatro linhas os pontos necessários para o apuramento. Foi uma falha administrativa — a utilização indevida de um jogador — que retirou ao país essa conquista. À época, Mário Semedo foi alvo de linchamento público, acusações infames e teorias conspirativas indignas, incluindo a absurda ideia de que se teria “vendido” aos tunisinos. Doze anos depois, a história encarregou-se de repor a verdade: Semedo regressa à liderança e entrega, finalmente, o Mundial a Cabo Verde.
É neste contexto que se anunciam eleições para a presidência da FCF, marcadas para 3 de janeiro. Tudo apontava para uma candidatura consensualíssima. E com razão. Até um dos seus mais proeminentes adversários, Mário 'Donnay' Avelino, teve a lucidez e o senso desportivo para reconhecer que este é o momento de Mário Semedo, desistindo da corrida.
Mas eis que surge o inesperado — e o profundamente incompreensível. Uma candidatura alternativa, liderada por Eliseu, precisamente alguém que integra a atual estrutura federativa e preside o Conselho de Arbitragem. Ou seja, alguém que trabalha com Mário Semedo, sob a sua liderança. Não se trata apenas de uma candidatura inoportuna; trata-se de um gesto que cheira a golpe palaciano. Mas, lá está, muitas vezes a quem dás dentes é que te irá morder. E o time da candidatura encabeçada por Eliseu integra muita gente com dentadura paga pela FCF.
Mais grave ainda: esta tentativa de tomada de poder acontece a meses do Mundial. Criar ruído interno, dividir estruturas, gerar instabilidade política e administrativa neste momento não é apenas irresponsável — é perigoso. O futebol de alto nível exige estabilidade, confiança e foco absoluto. Tudo o que esta candidatura faz é colocar o ego individual acima do interesse coletivo.
Cabe agora aos presidentes das associações regionais de futebol demonstrarem maturidade, bom senso e visão estratégica. O timing importa. As consequências importam. O impacto de uma decisão destas pode repercutir-se diretamente no desempenho da seleção nacional.
Afastar uma liderança vencedora às vésperas do maior desafio da história do futebol cabo-verdiano é impensável, extemporâneo e desprovido de qualquer sentido patriótico. A sociedade cabo-verdiana dificilmente compreenderá — ou apoiará — uma mudança que mais parece retirar o pão da bica a quem fez a massa, esperou a fermentação e levou o forno à temperatura certa.
Mário Semedo é hoje uma figura respeitada internacionalmente, com redes, conhecimento e autoridade. Sabe a quem ligar, como entrar e como sair nos corredores do futebol mundial. Não se improvisa liderança deste nível em meses.
Se Mário Semedo não vencer, com reconhecido mérito, as eleições de 3 de janeiro, Cabo Verde não estará apenas a cometer um erro político-desportivo. Estará a protagonizar a maior decepção da sua história futebolística — um autogolo cometido fora do campo, quando a vitória estava finalmente ao alcance.
Afinal, todo o apoio que o pais inteiro, nas ilhas e na diáspora, e quase meio mundo deu também a Cabo Verde para conquistar a qualificação ao Mundial dos EUA, México e Canadá, não foi apenas para dentro do recinto de jogo - o suporte, que se galvazina a cada dia, vai dos jogadores à equipa técnica e toda a estrutura que permitiu esse desempenho. Estivemos unidos mais do que nunca. Não é agora que vamos permitir que apareçam oportunistas a quererem colher sementeira alheia. É injusto, desleal, deselegante e reprovável. Porque, vou repeti-lo, "muitos homens desperdiçam a eternidade dos outros porque não conquista a própria vez" (GT Didial, em O Estado Impenitente da Fragilidade). Sim, homens venais, que se vendem por tostões e compram a feijões.
Acredito, todavia, no discernimento das associações - ou se juntam à continuidade, garantindo estabilidade no momento maior do nosso futebol, ou arriscam uma boleia que lhes retira caráter e credibilidade na cena desportiva e social doméstica. É só fazer a equação.
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