Ano Digital
Ponto de Vista

Ano Digital

"...assistimos a uma transferência sistemática do protagonismo tecnológico para empresas estrangeiras, que capturam a esmagadora maioria dos grandes contratos públicos. Uma análise simples ao investimento do Estado em tecnologia revela que milhões de euros são sistematicamente exportados, sem que os resultados justifiquem esse modelo. Enquanto isso, assiste-se a uma lavagem de marketing deste processo através do uso abusivo da palavra “startup”. Jovens são anestesiados com eventos, visitas imersivas e promessas vagas, enquanto lhes é negado o acesso real ao mercado nacional, um mercado repleto de desafios concretos de transformação digital. Canalizam-se tostões para “inspirar” jovens, mas reservam-se milhões para empresas estrangeiras fazerem aquilo que esses mesmos jovens poderiam fazer. Esta bolha acabará por rebentar."

Aproximamo-nos aceleradamente de 2026. É tempo de olhar para trás, refletir sobre o ano que passou e, sobretudo, perspetivar o próximo ciclo com sentido de responsabilidade histórica.

Nesta reflexão, penso no Digital, não como moda, slogan ou fetiche tecnológico, mas como um verdadeiro instrumento de desenvolvimento. Vejo um país com mais de 90% de penetração de Internet a viver um paradoxo inquietante: uma sociedade altamente conectada, mas estruturalmente não digitalizada.

A Internet, esse instrumento poderoso, é usada maioritariamente para lazer e entretenimento, enquanto a produtividade, a eficiência económica e a modernização dos serviços continuam reféns de práticas analógicas. A esmagadora maioria dos pagamentos básicos continua a ser feita presencialmente, em balcões públicos ou privados. O mobile money, em todas as suas dimensões, permanece um desejo adiado numa sociedade essencialmente informal, onde os bancos continuam a ser quase os únicos protagonistas do sistema financeiro. A legislação e os critérios de entrada para empresas ágeis e inovadoras no ecossistema financeiro mantêm-se proibitivos, funcionando como verdadeiras barreiras à inovação.

Na agricultura e nas pescas, o cenário não é menos preocupante. Continuam a ser setores de sobrevivência e não alavancas de desenvolvimento. Apesar de recebermos cerca de um milhão de turistas por ano, persistimos em resistir à transformação digital destes setores para servir, de forma estruturada, as necessidades do turismo. Este talvez seja o mais gritante dos paradoxos: um país com desafios sérios de pobreza que se recusa a normalizar e modernizar os setores agrícola e piscatório, desperdiçando uma oportunidade clara de estancar a fuga de divisas e redistribuir riqueza junto da população crioula.

Começa a ser difícil não classificar esta inércia como um crime de lesa-pátria. Existem soluções tecnológicas, exemplos internacionais e modelos testados que, com foco e visão, poderiam reduzir drasticamente a pobreza em Cabo Verde através da criação de cadeias de valor ligadas ao turismo. A transformação digital é precisamente isso: acelerar o desenvolvimento através da tecnologia.

A saúde, outro pilar fundamental de qualquer nação, continua excessivamente dependente de uma oferta física. Num arquipélago, esta opção não é apenas ineficiente,  é estruturalmente cara e socialmente injusta, afetando inclusive sistemas de suporte como a proteção social. A teleconsulta, o telediagnóstico e a telemedicina continuam a ser palavras bonitas em discursos políticos, mas permanecem inacessíveis de forma massiva enquanto instrumentos reais de transformação do setor da saúde.

Talvez a raiz desta letargia digital esteja no sistema educativo, o verdadeiro embrião da digitalização de uma sociedade. Sem uma aposta clara numa geração nativa digital, não se pode esperar uma transformação digital sustentável. O currículo académico não está a sofrer, com a celeridade necessária, as transformações exigidas pelo mundo contemporâneo. Capacitar futuras gerações com instrumentos desadequados é, na prática, castrar o potencial de uma nação.

Num mundo em rápida mutação, não ter um sistema educativo nativamente digital é comprometer o futuro coletivo. Existem melhorias graduais, é verdade, mas quando os mínimos olímpicos exigem uma transformação estrutural, a lentidão torna-se um risco sistémico. Realidade virtual, realidade aumentada e inteligência artificial não são acessórios: exigem um repensar profundo dos modelos de ensino e aprendizagem.

Mais grave ainda é observar a administração pública, núcleo central da agilidade do Estado, persistir em processos manuais, fragmentados e burocráticos. É angustiante perceber como, de forma institucional, a burocracia se cristaliza. Ministérios transformam-se em verdadeiros bunkers administrativos, reforçando silos de poder e bloqueando serviços centrados no cidadão. As reformas avançam apenas dentro de cada ministério, fortalecendo feudos internos.

Projetos estruturantes e transformadores,  como o portal do cidadão e a equipa digital, são frequentemente vistos como ameaças ao status quo e enfrentam resistências passivas que os fragilizam, quando deveriam ser os principais motores da transformação digital da administração pública crioula. Entidades que no passado tiveram pujança transformadora, como o NOSI, foram progressivamente limitadas no seu âmbito de atuação, sob o argumento de “deixar florescer o setor privado”, mas que na verdade permitiu a “recolonização digital” cabo-verdiana quando já tínhamos exemplos claros de competências nacionais (SISP, CVT, NOSI, MSN, Prime, Sintaxy, Devtrust e tantas outras..).

Esse florescimento, infelizmente, não aconteceu. O enfraquecimento do setor público tecnológico não resultou no fortalecimento das empresas nacionais. Pelo contrário: assistimos a uma transferência sistemática do protagonismo tecnológico para empresas estrangeiras, que capturam a esmagadora maioria dos grandes contratos públicos. Uma análise simples ao investimento do Estado em tecnologia revela que milhões de euros são sistematicamente exportados, sem que os resultados justifiquem esse modelo.

Enquanto isso, assiste-se a uma lavagem de marketing deste processo através do uso abusivo da palavra “startup”. Jovens são anestesiados com eventos, visitas imersivas e promessas vagas, enquanto lhes é negado o acesso real ao mercado nacional, um mercado repleto de desafios concretos de transformação digital. Canalizam-se tostões para “inspirar” jovens, mas reservam-se milhões para empresas estrangeiras fazerem aquilo que esses mesmos jovens poderiam fazer. Esta bolha acabará por rebentar.

Acredito que exista vontade política genuína de apostar no digital. Mas essa vontade é descaracterizada quando se desbaratam recursos em soluções externas e se anestesia o talento nacional. O resultado é dependência futura num setor onde Cabo Verde já tinha conquistado autonomia.

A minha leitura retrospetiva de 2025 no digital não é positiva. Para 2026, ano em que projetos políticos serão submetidos ao julgamento dos eleitores, desejo que o digital continue a ser prioridade, mas com uma aposta clara, firme e corajosa nas competências nacionais. Que se reconheça que projetos e instituições nacionais permitem apostar no talento crioulo para a transformação digital que Cabo Verde necessita.

Da minha parte, a decisão sobre os critérios para o meu voto está tomada há muito tempo: votarei no projeto político que compreenda o digital como eixo central do desenvolvimento e eliminação da pobreza, que rejeite a basofaria tecnológica e que apresente propostas claras, concretas e estruturadas para valorizar as competências nacionais.

Estancar o desperdício de milhões de euros que hoje apenas alimenta dependência futura será, para mim, o critério central nas próximas eleições. Esse é o meu baseline para 2026.

Artigo publicado pelo autor no facebook

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