Apontamentos sobre como um despacho de acusação força uma tosca narrativa para encobrir um suposto ‘Crime de Estado’, mas que pode ter destapado involuntariamente a fossa inumada do sistema de Justiça cabo-verdiano – a acusação a três inspectores da PJ por perjúrio e manipulação de provas, que incriminariam por exemplo o ministro da Administração Interna num caso de homicídio (morte violenta de Zezito Denti d’Oru) agravado, é um embuste, um chumaço de texto onde a hermenêutica e a lógica são superiormente demitidos pelo Ministério Público.
1. A investigação à morte violenta de Zezito Denti d’Oru começou mal e tende a acabar pior. A Procuradoria Geral da República quis mostrar serviço abrindo um inquérito a um suposto caso de “homicídio agravado” contra um presumível assassino a soldo de narcotraficantes, Zezito Denti d’Oru. Havia um único suspeito, a instituição pública Polícia Judiciária (Estado), e várias testemunhas, mas só os agentes da PJ foram considerados pautáveis. Precisamente, os agentes que hoje são arguidos, juntamente com Paulo Rocha, na ACP solicitada pelos familiares de Zezito Denti d’Oru, processo esse que tem como atestadores, curiosamente, André Semedo, Gerson Lima e Jandir Reis. Ou seja, houve uma inversão total de protagonistas, testemunhas viraram arguidos e arguidos (os agentes da PJ que participaram no homicídio da Cidadela) foram transformados em testemunhas.
2. Em todo esse processo, o Ministério Público não ouviu o ex-director nacional da PJ, Carlos Alexandre Reis, que era superior de Paulo Rocha à data dos acontecimentos, nem o próprio Paulo Rocha (goza de imunidade parlamentar, já que deputado nacional do MpD por São Vicente), nem também Júlio Melício, superintendente da Polícia Nacional que seria um dos primeiros a chegar ao local do crime, tendo inclusive confrontado o ‘modus operandi’ da PJ nessa noite de 13 de Outubro de 2014. De facto, o MP descartou, com indisfarçável dolo, testemunhas-chave, razão pela qual Adelino Gomes (Ady, única testemunha ocular), que estava com Zezito Denti d’Oru na viatura interceptada pela Judiciária na fatídica noite em Cidadela nunca foi considerado imputável – bem, na verdade o foi quando Ary Varela liderava a investigação, mas com a sua substituição toda a linha de pesquisa foi desvirtuada, desviada, alterada.
3. Neste momento, três inspetores da PJ estão convenientemente acusados de mentir “só” para prejudicarem Paulo Rocha e os operativos que dispararam a matar contra um cidadão – seja ele assassino, santo ou um bode expiatório. Não pretendo vestir aqui o papel de advogado do diabo, mas os argumentos que sustentam as acusações contra esses inspectores são falhos em substância. Vejamos, André Semedo responde por um crime de inserção de falsidade em documento público e outro por prevaricação de funcionário público. Isto porque, segundo o MP, Semedo, que enquanto Coordenador Superior de Investigação Criminal da PJ, forneceu a pedido do MP a lista com os nomes de todos os elementos do Grupo de Operações Tácticas que fez a emboscada a Zezito Denti d’Oru, não estava na Praia em 2014 (exercia o cargo de responsável máximo da Judiciária no Mindelo) à data dos acontecimentos, logo não poderia saber os meandros dessa operação. Cabe na cabeça de alguém que um coordenador superior de Investigação Criminal não tenha acesso a documentos sobre operações da PJ, ainda que classificados? Outrossim, foi o próprio MP quem o arrolou como testemunha e lhe pediu para fornecer a lista dos participantes da operação em Cidadela. Afinal, se o inspector André Semedo não estava na Praia nem tinha como saber de nada, por que o chamaram a depor como testemunha?
4. No caso de Gerson Lima aquilo que dissera antes ao procurador Ary Varela deixou de prestar. Num segundo depoimento, Lima desmentiu tudo o que havia dito e foi essa segunda versão que o procurador Nilton Moniz levou em consideração e dá como verdadeira, o que não deixa de ser subjectivo já que ninguém garante que o inspector não terá sido assediado para mudar de discurso. Aliás, dois meses depois dessa conversa com Moniz, Gerson Lima fez juntar aos autos uma gravação contendo uma conversa mantida com o inspector da PJ, Natalino Correia, onde, aparentemente, estavam a negociar a narrativa que Lima deveria utilizar em troca do arquivamento de um processo existente contra ele por envolvimento com narcotraficantes. Eu ouvi esse áudio e me pareceu evidente essa tentativa de compra de consciência. Mais, depois de ser interrogado por Nilton Moniz e de ter desdito que Paulo Rocha estava no local do crime, Gerson Lima em 2021 fez chegar ao Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente da Assembleia Nacional, ministra da Justiça uma carta onde relatava tudo o que sabia e acusava o actual ministro da Administração Interna de ter planeado a execução de Zezito Denti d’Oru. Ora, esta carta existe e nunca foi desmentida, ou seja, ainda valem as informações nela vertidas.
5. É claro que essa postura violou o segredo de justiça e aqui não há como fugir porque ele é interveniente no processo. Mas essas entidades sabiam e sabem de tudo, todavia remetem-se ao silêncio. O Primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, só falou deste assunto para manifestar confiança total no seu ministro e ex-espião nomeado por José Maria Neves para director do SIR a seguir à operação da Cidadela – de recordar que Zezito Denti d’Oru também era tido como o autor do atentado contra o filho do ex-primeiro ministro, JMN, também na Cidadela. A protecção ao MAI – por questão de honra e honestidade intelectual deveria pedir demissão, se disponibilizar a ser investigado e ajudar a esclarecer o que se passou – é total. Tanto que, mesmo sendo informador de JMN durante a governação do PAICV, foi mantido no cargo por UCS que o haveria de promover a ministro responsável pela segurança interna do país e, nas últimas legislativas, aparece como cabeça de lista do MpD por São Vicente, sem nunca ter sido militante ou feito política activa. Objectivo? Imunidade parlamentar, desconfio.
6. Sim, todo este processo nasceu inquinado, desde o dia que a Procuradoria Geral da República quis investigar um assassinato e ter-se-á deparado diante de quem não se deve mexer. As notícias sobre um eventual envolvimento de um governante num caso de “homicídio agravado” não eram seguramente o que a PGR esperaria acontecer. Mas aconteceu, obrigando o MP a levantar processos por violação do segredo de justiça e desobediência qualificada aos jornais Santiago Magazine e A Nação e aos jornalistas Herminio Silves e Daniel Almeida de modo a abafar o escândalo. Nessa tentativa, a própria PGR violou o segredo de justiça quando veio à praça pública, em reacção a uma reportagem deste diário digital, desmentir o jornal garantindo (oito anos depois) que “Não obstante as diligências, até à data, o Ministério Público não constituiu ninguém arguido, nem notificou o atual Ministro da Administração Interna para prestar qualquer declaração nos mencionados autos, nem mesmo na qualidade de testemunha”, isso quando a investigação ainda decorria. Foi a PGR quem ilibou publicamente o ministro com a investigação em curso e o nome de Paulo Rocha entre os suspeitos. O Ministério Público, enfim, expert na selecção de alvos a amordaçar e encarcerar quando se vê acossado no seu ego, buscou sarda para coçar, mas a comichão virou coceira e isso, se levado a sério, pode causar sangramento na pele e feridas profundas neste país sedento de 'justiça da verdade'.
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