É inaceitável que, passados dois meses, o Governo de Cabo Verde, a Cruz Vermelha, a Câmara Municipal de São Vicente e as fundações privadas envolvidas não tenham apresentado um balanço público e auditado das doações e fundos angariados (nacionais e internacionais). O povo tem o direito de saber onde está cada escudo, quanto chegou às famílias, quanto foi gasto em logística e quanto ficou por gastar. Não basta citar “planos” e “estratégias”. A solidariedade não se mede em comunicados, mede-se em resultados. E quando existem vítimas mortais e ainda um desaparecido, não há desculpas possíveis para a ausência de transparência.
Na madrugada de 11 de Agosto de 2025, São Vicente foi atingida por chuvas torrenciais que transformaram ruas em rios, casas em ruínas e vidas foram ceifadas nessa madrugada. O que parecia ser apenas mais uma noite de chuva intensa tornou-se numa tragédia que o país não esquecerá tão cedo.
Entre as vítimas, uma história ganhou nome, rosto e símbolo: a de uma família destruída pela força das águas. Um menino de apenas cinco anos foi arrastado pela enxurrada, e a bisavó, de setenta e dois anos, continua desaparecida; o mar e o tempo levaram-na sem devolução.
O pai sobreviveu, mas o que lhe resta é a dor e o espanto de ver a vida desfeita em minutos. Vive hoje entre a perda e inúmeras promessas, esperando uma ajuda que tarda, num país que parece já ter esquecido a tragédia.
Enquanto o luto se instalava, campanhas de solidariedade multiplicaram-se. A diáspora reagiu com emoção e rapidez: em França, Portugal, Holanda e nos Estados Unidos, grupos organizaram recolhas, concertos e campanhas online. Uma das mais mediáticas, “Amor Pá Soncent — Nu Djunta Mon”, ultrapassou 170 mil dólares em poucos dias. Outras dezenas surgiram, somando centenas de milhares de dólares anunciados para apoio directo às vítimas.
O Governo de Cabo Verde declarou estado de calamidade e anunciou um plano de reconstrução de 3,8 mil milhões de escudos (cerca de 34 milhões de euros) para obras, realojamentos e assistência social. A Câmara Municipal da Praia prometeu 6 milhões de escudos para ONG’s e acções de apoio em São Vicente. As promessas foram muitas. O que faltam são respostas verificáveis.
Dois meses depois, as perguntas não se calam: Onde estão os fundos? Quem os gere? Quem presta contas? E por que razão as famílias continuam a viver em condições indignas, quando uma multidão se mobilizou para ajudar?
Essa mesma família, que perdeu o menino e a bisavó, sente-se abandonada. Recebeu visitas, câmaras, declarações públicas, mas ajuda concreta, quase nenhuma. Outras famílias relatam o mesmo: apoios fragmentados, promessas vagas e burocracias que transformam o sofrimento em espera.
A dor permanece, e a desconfiança cresce. Num país que se orgulha de transparência, não existe um único portal público onde se possa ver, de forma clara, quanto dinheiro entrou, de onde veio, a quem foi entregue e o que foi feito com ele. Não há relatórios cruzados entre o Governo, a Cruz Vermelha, as autarquias e as campanhas da diáspora. Há um vazio administrativo e ético, e nesse vazio morre a confiança.
As tragédias naturais revelam sempre o melhor e o pior dos países. Em São Vicente, o melhor veio do povo: a generosidade espontânea, a união e o impulso de ajudar; o pior veio das instituições: a falta de coordenação, a opacidade e o desaparecimento da responsabilidade logo que as câmaras se desligaram.
É inaceitável que, passados dois meses, o Governo de Cabo Verde, a Cruz Vermelha, a Câmara Municipal de São Vicente e as fundações privadas envolvidas não tenham apresentado um balanço público e auditado das doações e fundos angariados (nacionais e internacionais). O povo tem o direito de saber onde está cada escudo, quanto chegou às famílias, quanto foi gasto em logística e quanto ficou por gastar.
Não basta citar “planos” e “estratégias”. A solidariedade não se mede em comunicados, mede-se em resultados. E quando existem vítimas mortais e ainda um desaparecido, não há desculpas possíveis para a ausência de transparência.
Cabo Verde precisa de respostas concretas, já. A memória do menino e da bisavó, que foram o “rosto” da tragédia, exige mais do que homenagens; exige verdade, prestação de contas e decência institucional.
E enquanto o silêncio se prolonga, o povo continua a perguntar, com razão e com dor:
Onde pára o dinheiro?
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