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Diplomacia. Por que estes catitas não se entendem?
Colunista

Diplomacia. Por que estes catitas não se entendem?

O PR e o PM andam dessintonizados e não é novidade. Mas o factor Zelensky levou a crispação entre o Palácio do Plateau e o Palácio da Várzea a um outro patamar: deslealdade institucional e malabarismos retóricos. Tanto José Maria Neves quanto Ulisses Correia e Silva buscam protagonismo político e aplausos do Ocidente. E Zelensky dá audiência, condimento perfeito para o caldo fermentar e logo azedar com a postura de Cabo Verde em relação ao conflito Gaza, onde acontece um um espectáculo horrendo, sob inadmissível, mas explicável, indiferença do Governo.

Vichyssoise é uma sopa famosa da culinária francesa que se come quente ou então bem fria. José Maria Neves não quis deixar o tacho esfriar e mal Volodymir Zelensky levantou voo aproveitou para mandar recado directo a Ulisses Correia e Silva, pela imprensa: olhe lá!, esse hóspede era meu. O Primeiro-ministro, também, serviu-se do prato quente, desmentindo publicamente o presidente ao assegurar, em comunicado, que informou tudo ao chefe de Estado desde véspera.

É evidente que JMN sabia desse encontro fugaz na ilha do Sal, mas omitiu essa informação aos jornalistas quando mostrou estranheza pelofacto de o tête-a-tête ter acontecido entre UCS e Volodimir Zelensky. Foi o próprio PR quem admitiu isso após os esclarecimentos do Governo, explicando que mais do que mera informação era necessária “uma articulação” entre o Palácio da Várzea e o Palácio do Plateau.

E aqui JMN tem razão, mas poderia também ter utilizado seus “canais protocolares” para levantar essa questão, preferindo as redes sociais para fazer seu desabafo. Ulisses, obviamente, falhou ao achar que bastava um simples e-mail a informar o chefe de Estado do seu encontro com o chefe de Estado ucraniano, mas, só que lhe custa admitir tal desprezo depois de preencher as manchetes e ser notícia mundo fora pelo inusitado meeting.

Pulando o ónus sobre quem legalmente deveria receber o presidente da Ucrânia ou mesmo o mérito desse encontro em relação aos intereses internacionais de Cabo Verde e os laços bilaterais históricos que o país mantém com a Rússia, parece haver poucas dúvidas que houve da parte do primeiro-ministro deslealdade institucional – por se ster a uma simples passagem de informação ao PR, fugindo a uma leal e sensata articulação com o chefe de Estado em matéria diplomacia e relações externas – e truque retórico de José Maria Neves a tentar, primeiro, convencer os cabo-verdianos que não sabia de nada, daí a sua estranheza, e só depois de desmascarado assumir que se referia à falta de articulação que, de facto, poderia ser evitado esse quiproquó.

Os dois parecem dois putos catitas a jogar uma roleta-russa inversa, à cata de um maior protagonismo político. A sensação é de que antagonizam ideias e posições como que de propósito a ver quem sabe mais, para contar melhor. E, no fim das contas, conquistar o “amado” eleitor, ficando de lado os reais interesses do país, enquanto Estado soberano, tornando-nos palhaços ante a Aldeia Global.

Neves quer se reeleger para o seu segundo mandato, quiçá, com maior margem possível e escrever (mais uma vez) seu nome na história política do país. Todas as oportunidades para aparecer como estadista, qual pêndulo do sistema, versão que adoptou ainda antes de vencer as presidenciais (enquanto primeiro-ministro foi bem mais pragmático, combativo e calculista), ele não quererá, decerto, desaproveitar.

Ora, a passagem do homem do ano 2022 para a revista Time pela ilha do Sal – ia assistir à posse do presidente argentino, Javier Milei – é um de desses momentos que lhe assentava como uma luva.

Ulisses – em busca de novo mandato e tido ainda por potencial candidato presidencial pelas hostes do MpD, o único com aparente chance de pleitear com JMN – ter-se-á apercebido disso, daí, acredito, ter apenas se limitado a “informar” o PR do encontro com Zelensky, sem articular nada com o chefe de Estado, e então aparecer ele nas fotos e ecrãs de TV ao lado do presidente ucraniano, que dá audiência.

Fosse um líder africano a fazer escala no Sal, tudo passava em branco.

O viés Ocidental, lamentavelmente, coloniza até os dias de hoje.

2.

Gaza. Cabo Verde na sala do horror

A catástrofe que se testemunha em Gaza e abala o mundo parece não incomodar minimamente o Governo de Cabo Verde, que voltou a abster-se de votar a favor de um solidário cessar-fogo humanitário para acudir civis palestinianos ante o massacre que Israel vem perpetrando contra o si. Talvez até incomode, são seres humanos, esses do Governo. Acontece que o país estará manietado, encarcerado na lealdade, refém de um (mal desmentido) compromisso assumido em tempos pelo anterior PR, Jorge Carlos Fonseca, com Benjamin Netanyahu, em como Praia nunca votará favorável a nenhuma resolução apresentada na ONU contra Tel-Aviv.

Foi no dia 2 de Agosto de 2017 que o presidente israelita, Benjamin Netanyhau, publicou na sua conta no Tweeter (hoje, X) a informação de que Cabo Verde anunciara não mais votar qualquer resolução da ONU contra Israel e, acrescentou o líder israelita, que tal acordo nasceu do encontro que manteve com o então presidente Jorge Carlos Fonseca, que aparece ao seu lado na foto.

JCF tinha-se reunido com o primeiro-ministro israelita um mês antes, durante a reunião de líderes da CEDEAO, em Monróvia, Libéria, e onde Netanyahu se fez presente, numa tentativa de aproximação a África. Ali, o ex-presidente da República comprometeu-se em como Cabo Verde passa daqui para a frente a dar total apoio a Israel sempre que estiver uma resolução por aprovar na Assembleia-geral das Nações Unidas.

E foi o próprio líder israelita quem anunciou a promessa feita por Jorge Carlos Fonseca no seu twitter. “Congratulo-me com a decisão do presidente de Cabo Verde. Este é o resultado de uma intensa actividade diplomática entre Israel e África”, escreveu Benjamin Netanyahu esta quarta-feira, 2.

Ora, a Presidência na altura inclusive partilhou o tweet de Netanyhau na página oficial no facebook, mas veio depois desmentir a veracidade da informação quando Santiago Magazine fez notícia deste assunto, assim como fizeram os jornais daquele país do Médio Oriente.

Também o Governo viria a público esclarecer as relações com Israel, negando a existência de compromisso para votar sistematicamente a favor desse país. A oposição criticou o estado de deriva, no qual se encontra a diplomacia e a política externa de Cabo Verde e vários quadrantes da sociedade insurgiram-se contra este não assumido posicionamento e o caso foi notícia internacionalmente.

O desmentido foi tão torto que meses depois, o primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, anunciaria que iria assinar um acordo de cooperação alargado com Israel em áreas estratégicas para Cabo Verde.
"Vamos estabelecer um acordo de cooperação alargado em áreas de interesse estratégico para Cabo Verde, incluindo a água e agricultura, segurança, tecnologia e inovação, energias renováveis, desenvolvimento de 'startups" e saúde", disse Ulisses Correia e Silva. Até hoje nada se viu vindo de Israel.

Sendo incompreensível a neutralidade de Cabo Verde face ao horror que se vive em Gaza, abstendo-se de votar a favor de um cessar-fogo humanitário, só encontro uma possível, porém inaceitável, explicação nesse suposto secreto acordo entre Praia e Tel-Aviv, isto é, entre este governo e o Estado israelita.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine