
As bruxas de hoje não se escondem nas sombras. Estão nos parlamentos, nas autarquias, na comunicação social, nas universidades, nas ruas, e nas empresas. Têm rosto, têm nome, e não precisam de autorização para existirem. O tempo das fogueiras acabou, mas a luta pela dignidade feminina está longe de terminar. Enquanto uma mulher for insultada por pensar, ridicularizada por liderar ou condenada por ser livre, Cabo Verde continuará a ser um país que queima as suas próprias filhas. E nós, que sobrevivemos às chamas, não pedimos piedade…exigimos consciência. Porque a igualdade não é concessão, é um direito. E nenhum direito se mendiga. Conquista-se.
Durante séculos, milhares de mulheres foram perseguidas, torturadas e queimadas vivas sob a acusação de bruxaria. Eram parteiras, curandeiras, viúvas, pobres ou simplesmente mulheres que pensavam e viviam fora das regras impostas.
O crime delas? Existir com liberdade num tempo em que o poder masculino temia tudo o que não podia controlar.
A caça às bruxas foi mais do que superstição. Foi um projeto político e social para “domesticar” o feminino, para eliminar a mulher como símbolo de autonomia e transformá-la num corpo submisso, útil e silencioso. A fogueira era o castigo, mas também um aviso.
Cinco séculos depois, o fogo não se apagou. Mudaram-lhe o nome, o método e o cenário, mas o propósito é o mesmo: calar, humilhar e anular.
Hoje, as fogueiras ardem nas redes sociais, alimentadas por ódio e cobardia, acesas por dedos que apontam e por vozes que, em coro, continuam a repetir a velha sentença que a mulher que não se submete deve ser silenciada.
Em Cabo Verde, esta guerra não é ficção, mas sim o retrato quotidiano de uma sociedade que, apesar de moderna no discurso, continua medieval nos hábitos. As mulheres que ousam ocupar o espaço público são julgadas com a severidade reservada aos hereges. Não se analisa o seu trabalho, escrutina-se sim, a sua roupa, o seu corpo ou o seu tom de voz. Não se reconhece mérito às mulheres; atribui-se-lhes um patrocinador. Quando ascendem, a leitura é imediata: “subiu na horizontal”. A mediocridade masculina, essa, continua a ser vertical e socialmente aceite.
As redes sociais tornaram-se o novo tribunal inquisitorial, onde as mulheres são julgadas não por crimes, mas por ousadia. E as mais atacadas são, invariavelmente, as que mais conquistaram. Basta abrir a boca para serem julgadas. Basta existir fora do molde para serem queimadas…agora não com lenha, mas com comentários, boatos e ataques pessoais.
É neste contexto que se fala de “empoderamento feminino” como se fosse uma dádiva, uma esmola conceptual concedida às mulheres para que se sintam incluídas. Recuso essa palavra. Irrita-me solenemente. Porque não há empoderamento masculino, e igualdade que precise de prefixo já nasce desequilibrada. A mulher não precisa que lhe “empoderem” coisa nenhuma; precisa que lhe devolvam o que sempre lhe foi negado: respeito, espaço e reconhecimento do seu mérito.
A Lei da Paridade, celebrada como conquista, corre o risco de se tornar numa farsa institucional. Porque quando o acesso das mulheres aos lugares de decisão é tratado como quota e não como reconhecimento do mérito, transforma-se um direito numa concessão. Não precisamos de paridade por decreto; precisamos de justiça estrutural. Precisamos de uma Lei do Mérito, onde a capacidade prevaleça sobre o género e o esforço seja critério absoluto. A igualdade verdadeira não é matemática, é moral.
Enquanto Cabo Verde se vangloria da sua democracia, as mulheres que sustentam essa democracia continuam a ser atacadas por exercê-la. Nos bastidores da política, o machismo continua a decidir quem sobe e quem cai. No espaço público, as mulheres enfrentam o duplo julgamento: o dos homens que as hostilizam e o das mulheres que, colonizadas pela mesma mentalidade, participam ferozmente do linchamento. E é essa cumplicidade silenciosa que mais dói. É como se o fogo queimasse por dentro.
Esta guerra às bruxas é o reflexo de um país que ainda não entendeu que a igualdade não se declara, pratica-se. Que as mulheres não querem ser toleradas. Elas querem ser respeitadas. E que o poder feminino não é uma ameaça à ordem, mas um teste à maturidade social.
As bruxas de hoje não se escondem nas sombras. Estão nos parlamentos, nas autarquias, na comunicação social, nas universidades, nas ruas, e nas empresas. Têm rosto, têm nome, e não precisam de autorização para existirem.
O tempo das fogueiras acabou, mas a luta pela dignidade feminina está longe de terminar. Enquanto uma mulher for insultada por pensar, ridicularizada por liderar ou condenada por ser livre, Cabo Verde continuará a ser um país que queima as suas próprias filhas. E nós, que sobrevivemos às chamas, não pedimos piedade…exigimos consciência. Porque a igualdade não é concessão, é um direito. E nenhum direito se mendiga. Conquista-se.
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