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Casamento Gay. O que diz a legislação cabo-verdiana?
Sociedade

Casamento Gay. O que diz a legislação cabo-verdiana?

Constituição da República não é clara neste assunto. O Código Civil sim: o casamento é “a união voluntária entre duas pessoas de sexo diferente”, reza o artigo 1551º. Já se pede a revisão deste artigo.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um tema novo em Cabo Verde. Mas desde há muito tempo tem estado em discussão no mundo inteiro. Tornou-se aceitável em vários países como BélgicaCanadá e Espanha, África do SulNoruega e Suécia, Argentina,  PortugalEstados UnidosBrasilFrança, entre outros, e ainda espera aprovação de vários países – as nações muçulmanas, pelo contrário, condenam a relação homossexual, sendo por isso penalizada.

Em Cabo Verde, o tema divide opiniões, tanto que, após o polémico post do deputado do MpD, Miguel Monteiro, o assunto tomou conta das redes sociais com posições antagónicas dos internautas, até chegar aos políticos. O primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, garantiu que o assunto nunca esteve na agenda política do governo ou do MpD, mas o PAICV resolveu entrar em cena e, pela voz da sua líder, Janira Hopffer Almada, assumiu o debate sobre a homossexualidade, afirmando que temas que interessem à sociedade civil devem ser do interesse também do país, logo, dos partidos e do governo.

Mas e a lei, aceita o casamento gay? À primeira vista sim, mas é só aparência.

De facto, a Lei Magna permite o casamento a qualquer cidadão. Todos podem se casar, está claro. O problema é que esse ‘todos’ não abrangerá, por exemplo, o relacionamento entre um filho e a sua mãe ou uma neta com o avô. Porém, à luz da interpretação em vigor ‘todos’ podem contrair matrimónio. No caso do casamento gay, a lei nº 1551 do Código Civil define o casamento como matrimónio entre uma homem e uma mulher.

É isso que pensa o jurista José Henrique, que diz de pronto ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Segundo ele, citando o artigo 47.º, n.º 1 da Constituição da República de Cabo Verde, ‘‘todos têm o direito de contrair o casamento sob a forma civil ou religiosa. No entanto, esquecem que essa afirmação tem de ter, como é óbvio, outro sentido e alcance. Todos teriam o direito de contrair o casamento com quem quiserem, incluindo pessoas do mesmo sexo, mas isso não está na Constituição’’.

Para o jurista, a pretensão dos LGBTs, em “tentar fazer a cabeça dos políticos” e conseguir “meter na agenda política o casamento de e entre pessoas do mesmo sexo, traduz-se num grande deslize”.

‘‘Creio que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é repudiado pela grande maioria dos cabo-verdianos. Muitos à 200%, 300% e por aí fora. Casamento não é um nome vulgar, susceptível de abafar qualquer conteúdo. Tem um sentido próprio, intrínseco, que não está dependente da vontade de cada um. O casamento como união de pessoas do mesmo sexo não cabe seguramente no entendimento do termo pelo povo cabo-verdiano. A família surge logo à cabeça como a base das instituições. É o elemento fundamental de formação, desenvolvimento, estabilidade e continuidade dos seus membros e da sociedade’’, diz.

Para reflectir sobre esta questão, que tornou-se polémica em Cabo Verde, José Henrique diz que são fundamentais dois artigos para perceber melhor esta situação: o 47.º n.º 1 da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV), sobre o casamento e o artigo 87.º, n.º1 da CRCV, sobre a família. “Dispõe o artigo 47.º, n.º1 da CRCV que ‘todos têm o direito de contrair casamento, sob a forma civil ou religiosa’. O mesmo artigo regula depois no seu n.º 2, os requisitos e os efeitos civis do casamento e da sua dissolução, independentemente da forma de celebração”.

“No que se refere ao artigo 87.º n.ºs 1 e 2 da CRCV, estabelece que “ (1) a família, é o elemento fundamental e a base da sociedade; (2) a família deverá ser protegida pela sociedade e pelo Estado de modo a permitir a criação das condições para o cumprimento da sua função social e para realização pessoal dos seus membros”, esclarece José Henrique. O mesmo acrescenta ainda que o artigo 1551.º do Código Civil, define casamento como: “a união voluntária entre duas pessoas de sexo diferente, nos termos da lei, que pretendem constituir a família, mediante uma comunhão plena de vida”.

‘‘Nada disto é por acaso, nem se pode fazer-se dispor do livre arbítrio, como querem os LGBTs. O casamento dá o enriquecimento na diferença, com a correspondência exata à natureza’’.

Na semana passada, a Parallax Produções organizou um debate sobre o tema “LGBT: uma questão de amor, fé, lei ou poder?”, onde se concluiu que também que os artigos do Código Civil que proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo são inconstitucionais.

Odair Varela, especialista em comunicação e um dos participantes na iniciativa, defendeu a fiscalização da constitucionalidade de dois artigos do Código Civil, que é anterior à Constituição da República, considerando como «hipótese mais interessante» a intervenção do Provedor de Justiça. “É preciso endereçar uma carta ao Provedor de Justiça a solicitar a promoção da verificação da constitucionalidade dessas normas. Não é fácil, mas é um caminho”, disse.

Para o sociólogo e docente universitário Adilson Semedo, apesar de Cabo Verde ser estruturalmente um Estado secular, a sociedade não o é e vive uma moral “muito fundamentada na religião”, o que gera problemas de funcionamento. Assinalando que não é a religião que regula o funcionamento do Estado, mas a Constituição, considerou que esta é “uma questão de direito que não está na agenda política apenas por motivos eleitoralistas”.

O professor da Universidade Pública de Cabo Verde (UNICV) lembrou que o país ratificou as principais convenções internacionais sobre esta matéria, o que considerou uma “incongruência clara” a “forma hipócrita” como a classe política tem tratado o assunto.

O jurista Clóvis Silva sustentou, na ocasião, que o que está em causa “é o cumprimento da Constituição” e lembrou que Cabo Verde herdou o seu Código Civil de Portugal, onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo já é permitido.

Atendendo a que o Código Civil em vigor é anterior à independência do país, o jurista e deputado do PAICV entende que a aprovação da actual Constituição em 1992 deveria ter revogada automaticamente as normas que ditam que o casamento deve ser celebrado apenas entre pessoas de sexo diferente.

Ainda assim, admitiu que a classe política não “está em condições” de tomar a decisão de promover esta revisão legislativa por receio das consequências numa sociedade “muito religiosa”. A também jurista e ex-ministra da Administração Interna, Marisa Morais, sustentou que o tema tem que ser discutido “com base na Constituição que diz que «todos têm direito a contrair casamento»”.

Enfim, o casamento entre pessoas do mesmo sexo já se tornou comum em alguns países como é sabido, no entanto, é uma questão que ainda gera conflitos sociais. Chega agora a Cabo Verde, com manifestações de apoio a uma iniciativa parlamentar para legislar a favor do casamento homossexual. A batalha jurídica está ainda por começar.

Domingas Andrade

(Estagiária)

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