O deputado da UCID, João Santos Luís, afirmou ontem de manhã perante as antenas da Rádio Nacional que há abuso do poder em Cabo Verde.
Não sei se o deputado da UCID tem razão nas suas afirmações. Falar de abuso do poder num Estado de Direito pode ser, numa primeira abordagem, excessiva.
Porque, é suposto que nos Estados de Direito as instituições democráticas funcionem com o mínimo de respeito, independência e legalidade, dando provimento às leis e demais regulamentos estabelecidos para o bom funcionamento do aparelho do Estado.
São, de resto, princípios basilares dos regimes democráticos e que Cabo Verde assumiu desde o advento da segunda república, quando, em 1992, fez aprovar a sua constituição democrática, baseada nos princípios de separação de poderes e do primado das leis sobre tudo e todos.
Então, como justificar a afirmação do deputado democrata cristão? Certamente pela leitura dos factos sociais que entre nós têm acontecido.
O país vive mergulhado numa profunda onda de insegurança urbana nunca antes registada. Assaltos violentos, violação de propriedade privada e assassinatos são hoje notícias diárias e acontecem um pouco por todo o país.
Menores violentados nos seus direitos mais elementares. Atrocidades no seio familiar cada vez mais sofisticadas. Violação dos direitos fundamentais do cidadão de forma sistematizada.
Justiça lenta, ociosa e corrupta. Deficiente funcionamento dos tribunais e do ministério público. Flagrante amadorismo na investigação criminal e nos demais atropelos às leis, praticados por agentes públicos e privados.
Reina no país um clima de impunidade. Uma administração pública de costas voltadas para o cidadão. A sensação de que existe um muro a separar as instituições públicas dos cidadãos. A ideia de que os cidadãos estão entregues à sua sorte.
São sentimentos perigosos. Que empurram as pessoas para a violência, para o ajuste de contas, para a anarquia.
Discursos inflamados de um e outro lado. Intolerância à flor da pele. Tudo a correr, não se sabe qual é o destino. Ninguém que dispense um tempo para ouvir o outro. Há uma surdez generalizada. As instituições estão surdas para com os cidadãos. Os cidadãos estão surdos para com as instituições.
Porque não há confiança. Os princípios de legalidade, transparência, igualdade, universalidade, interesse público deram lugar ao compadrio, ao amiguismo e a outros expedientes que estão dominando paulatinamente as relações entre o cidadão e as entidades que representam o Estado e gerem os recursos de todos nós.
Expectativas goradas. Administração pública cada vez mais partidarizada. A meritocracia deitada para o lixo. A pirâmide continua invertida.
E com este estado de coisas, o Estado perde a autoridade. É algo natural. Se as instituições não funcionam, ou funcionam deficientemente, a anarquia instala-se e o salve-se quem puder toma conta de cabeças e corações.
Os sinais estão claros. A autoridade do Estado está ameaçada.
O Governo faz hoje a apresentação pública do Programa Nacional de Segurança Interna e Cidadania. Pode ser uma boa iniciativa. O país precisa disto e de outros para todas as áreas de desenvolvimento.
Todavia, mais do que programas e planos, o país precisa de paz, tolerância, amor, respeito, franqueza, transparência. Isto só acontece com mudança de atitude. Das instituições e das pessoas. Porque instituições são pessoas e pessoas são instituições.
As penalizações podem servir de algum modo, mas é preciso priorizar o cumprimento das leis por parte de quem manda nisto. Caso contrário, o abuso do poder efectivamente passará a ser um facto entre nós.
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