Que modelo de Administração Pública o MpD, efetivamente, defende para Cabo Verde?
Ponto de Vista

Que modelo de Administração Pública o MpD, efetivamente, defende para Cabo Verde?

Política e Administração Pública

Segundo David Ferraz, uma das questões cruciais com que as democracias contemporâneas hoje se deparam está relacionada com a interação entre atores políticos e atores administrativos. Para este autor, esta interação, enquanto fator crítico de sucesso na implementação das políticas públicas, encerra em si outras problemáticas, como a necessidade de se verificar, na ligação entre o Estado e o cidadão, alguma neutralidade e independência de atuação da Administração Pública e, simultaneamente, uma sujeição da Administração Pública ao poder de direção de um governo eleito. Estão, assim, em causa, de um lado, questões de transparência e legitimidade democrática, porque as políticas definidas pelo poder político, legitimamente eleito pelos cidadãos, pode perder o seu significado original pelo exercício de influências, condicionamentos, resistências ou omissões com origem no poder técnico exercido pela Administração Pública. Do outro lado estão em causa questões de neutralidade e independência da Administração Pública, uma vez que as relações de proximidade e de interoperabilidade entre os atores políticos e os atores administrativos, quando desprovidos de mecanismos eficazes de controlo, colocam em causa a isenção da atividade administrativa, a representatividade social das políticas públicas e, em última instância, a prossecução do interesse público.

A separação das esferas administrativa e política ganhou dimensão, sobretudo, com o desenvolvimento e afirmação do Estado Liberal e com o avigoramento do sistema capitalista. A partir daí, Política e Administração passam a ser vistas como atividades distintas (a Política estaria encarregue da definição do interesse público e a Administração deveria encarregar-se de executar as atividades necessárias para que os objetivos políticos e o interesse público fossem alcançados, através de regras e princípios estipulados claramente na lei).

Partindo destes pressupostos, em meados do sec. XIX, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, o modelo de separação entre Política e a Administração Pública começa a ser posto em prática. Nos EUA, em 1883, foi publicado o Pendleton Act, uma lei federal que estatuiu a Civil Service Comission. Este ato marca a adoção de um sistema de mérito em vez do até então existente spoils system, caraterizado por ser corrupto e arbitrário. Este marco influenciou a evolução das configurações político-administrativos. Frutos destas influências os originais modelos de seleção de dirigentes baseados em sistemas de livre escolhae nepotismo deram lugar, progressivamente, tanto na Europa como nos EUA, a modelos meritórios de índole profissional.

Estes modelos, a partir da segunda metade do século XX, em virtude das suas disfunções e das várias críticas apontadas ao  poder informal da burocracia profissional, deram lugar à ressurreição da política na Administração Pública. A politização da Administração Pública ganhou nova dimensão e era vista como uma forma de controlar o poder informal da burocracia.

Atualmente, questiona-se a possibilidade de uma total separação entre Política e Administração, sendo mais unânime a crença na existência de uma continuidade entre Política e Administração e na impossibilidade de definição, na prática, de fronteiras claras que dividam Política e Administração. Daí o surgimento de modelos híbridos, que procuram conciliar valores deconfiança eneutralidade e independência. No fundo, modelos que combinem os conhecimentos técnicos de profissionais, relativamente independentes e neutrais, com a confiança política necessária no desempenho de funções de direção.

Evolução do modelo cabo-verdiano

Em Cabo Verde, sobretudo quanto aos cargos dirigentes, pode afirmar-se que sempre funcionou a prática do spoils system, ou seja, os partidos, depois de ganhar uma eleição, atribuem cargos de direção na Administração Pública aos seus apoiantes, como retribuição ao apoio dado na eleição e incentivo para continuar o trabalho pelo partido.Tal realidade terá impedido uma separação clara entre Política e Administração Pública, em contramão com as práticas de outros países que levaram ao extremo a profissionalização das funções de direção. Infelizmente, hoje mais do que nunca, as nomeações na Administração Pública revestem um caráter predominantemente político e o seu mérito subordina-se, essencialmente, ao compromisso dos dirigentes com as políticas em vigor eà confiança do regime nos dirigentes nomeados. A configuração política da alta Administração Pública cabo-verdiana destoa-se, assim, das tendências de profissionalização que surgiram nos séculos XIX e XX, nos EUA e no Reino Unido, não obstante as sucessivas alterações a nível do estatuto do pessoal dirigente da Adiministração Pública.

O quadro seguinte apresenta a evolução dos estatutos do pessoal dirigente no pós 5 de julho de 1975.

Uma análise ao quadro 1 revela que os sucessivos estatutos do pessoal dirigente alteraram, no plano teórico, ciclicamente os critérios de nomeação dos dirigentes intermédios, ora nomeados politicamente, ora selecionados por concurso.

A titulo de exemplo, em 1989, reintroduziu-se a prática de nomeação dos dirigentes intermédios por livre escolha, rompendo com o percurso de profissionalização dessa categoria, iniciado com o Decreto-Lei n.º 74/86, de 25 de outubro. Em 1992, com o Decreto-lei n.º 86/92, de 16 de julho, a politização da Administração Pública acentua-se com a possibilidade denomeação de dirigentes públicos por livre escolha do Governo. Porém, os dirigentes intermédios passaram a ser recrutado por concurso.

O mais recente Estatuto do Pessoal Dirigente, aprovado Decreto-Lei n.° 59/2014, de 4 de novembro, mantém a diferenciação dos cargos de direção em dois níveis, tal como recomenda a OCDE (Nível 1: Direção superior: secretário geral, diretor nacional, diretor geral, inspetor geral ou presidente; eNível 2: Direção intermédia: diretor de serviços ou chefe de divisão).

Segundo o novo estatuto, a escolha do dirigente deverá recair sobre o candidato que cumpra os requisitos exigidos e, em sede de apreciação de candidaturas, melhor corresponda ao perfil pretendido. Esta alteração, na medida em que procura conciliar valores de confiança e neutralidade e independência, reflete a ideia deum aumento da profissionalização da Administração Pública ede uma clara aproximação aos modelos híbridos. Neste sentido vai, também, a Lei n.º 117/VIII/2016, de 24 de março. Com a entrada em vigor desta lei, o regime de recrutamento e seleção dos dirigentes da Administração Pública pública sofreu uma alteração importante. Os titulares dos cargos de direção superior passaram a ser recrutados, por escolha, de entre três indivíduos melhores classificados em concurso, que possuam competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas ao exercício das respetivas funções.

Fora desse regime fica apenas o recrutamento para os cargos dirigentes próprios das Forças Armadas e das forças de segurança, do Ministério das Relações Exteriores e para o cargo de Secretário-Geral.

O sistema de recrutamento de dirigentes públicosfoi igualmente reforçado e as debilidades dos júris tradicionais, derivados da inexistência de instrumentos que permitam aferir da isenção na construção do perfil do dirigente a selecionar, foram minimizados. Para tanto, crioiu-se a Agência de Recrutamento de Recursos Humanos da Administração Pública, entidade administrativa independente, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e funcional, que tem por missão principal planear e organizar a realização de recrutamento e seleção na Administração Pública Pública, garantindo a gestão previsional dos recursos humanos, e executar os procedimentos e as fases do recrutamento e seleção de pessoal na Administração Pública Pública.

Os titulares dos órgãos da Agência eram providos, após audição pela Assembleia Nacional, por Resolução do Conselho de Ministros, em regime de comissão de serviço por um período de cinco anos, não podendo os mesmos titulares serem providos no mesmo cargo antes de decorrido igual período. À Assembleia Nacional cabia o controlo da actividade da Agência de Recrutamento de Recursos Humanos da Administração Pública e a defesa e promoção dos princípios da isenção, mérito e transparência nos procedimentos de recrutamento e selecção para os cargos de direcção superior da Administração Pública Pública.

A contra-reformado MpD

A reforma no sistema de recrutamento e seleção de dirigentes públicos em Cabo Verde sofreu um revés enorme com a entrada em funções do IX Governo Constitucional da II República. Alegando impossibilidade de governar com uma Administração Pública Pública dominada por dirigentes nomeados pelo Governo cessante, o atual Governo extinguiu a Agência de Recrutamento de Recursos Humanos da Administração Pública e reperetinou o velho principio de livre escolha. Assim, os titulares dos cargos de direcção superior da Administração Pública passaram a ser recrutados, por livre escolha.

Note-se que, no seu Programa, o Governo afirmara “Somos pela despartidarização das chefias da Administração Pública Pública, pela separação entre o partido e o Estado, pelo reforço da transparência e combate à corrupção, através da promoção e da regulação de uma Administração Pública e governação abertas previstas na Constituição e na Lei do Procedimento Administrativo, garantindo a todos o acesso aos arquivos correntes da Administração Pública pública, assim como uma resposta atempada da justiça administrativa.”

O Governo prometera levar ao Parlamento uma proposta de lei sobre o recrutamento na Administração Pública Pública até dezembro de 2016. A promessa foi adiada para 2017 e ainda não foi cumprida.

Durante o último debate sobre o estado da Nação, o Primeiro Ministro não disse uma palavra sobre o assunto. Pelo contrário, aplaudiu efusivamente os Deputados da maioria queapregoam o saneamento da Administração Pública dos dirigentes que não sejam da confiança política do MpD.

Este quadro justifica a pergunta inicial: Que modelo de Administração Pública Pública o MpD, efetivamente, defende para Cabo Verde?

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