Há quem defenda que a língua portuguesa esteja longe de ser uma prioridade no momento que atravessa o nosso país. Que há outras preocupações mais urgentes como o combate à pobreza, o desemprego, etc.. Se refletirmos com alguma profundidade, não será difícil encontrar elos entre o combate à pobreza e a promoção da educação. E, em Cabo Verde, a língua portuguesa desempenha um papel cimeiro na educação.
Ontem, 13 de abril de 2023, subiu ao plenário da Assembleia Nacional de Cabo Verde um projeto-lei que visa classificar a língua portuguesa como património cultural de Cabo Verde. Li na íntegra o dito projeto lei e digo sem qualquer titubeação que o achei muito bem fundamentado. A proponente, a Deputada Nacional Mircéa Delgado, mostra um refinado sentido de lucidez e de pragmatismo. Dotado de um arrazoado claro e consistente, o projeto lei encontra-se ancorado em coerentes justificações histórico-culturais, sócio-identitárias e até políticas.
O projeto lei, como, de resto, seria de esperar, desencadeou reações diversas. Muitas destas reações prendem-se com o duplo complexo linguístico que assola a sociedade cabo-verdiana. Sim, há quem julgue ser de certa forma um cabo-verdiano “superior” por dominar (ou pelo por pensar que domina) a língua portuguesa; outros se julgam os mais excelsos patriotas por insistirem na promoção da língua cabo-verdiana em detrimento da portuguesa. Eu defendo a promoção das duas línguas, com ênfase nos pontos de maior carência de cada uma. A oficialização da língua cabo-verdiana é uma urgente necessidade. Que aconteça sem mais tardar. E francamente tenho alguma dificuldade em perceber por que razão a oficialização continua na gaveta. Contudo, se urge promover a língua cabo-verdiana (e acredito que a oficialização poderá ser uma mais-valia) a língua portuguesa, este património cabo-verdiano, também precisa de proteção e de promoção. É que a língua portuguesa está em declínio vertiginoso.
A deterioração da língua portuguesa é uma indesmentível realidade. Alguns opositores do projeto lei apresentado pela Deputada Mircéa Delgado argumentam que uma medida de promoção da língua portuguesa como é a sua classificação como património cultural e imaterial de Cabo Verde deve ser decidida a nível da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Este argumento não é válido, mesmo do ponto de vista do ordenamento jurídico que rege a CPLP. Mas ainda que fosse, a CPLP devia ser a primeira a regozijar-se com o projeto-lei. Digo isto por uma razão muito simples: a degenerescência da língua portuguesa assola toda a CPLP. Há estudos sobre o assunto, mas a observação empírica chega para tal constatação. Quando, em 2001, cheguei à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, dei conta das minhas enormes fragilidades na expressão portuguesa, mas para o meu espanto, as mesmas fragilidades (e outras bem maiores) eram visíveis nos meus colegas que beberam a língua portuguesa no leite materno. Lembro-me do meu espanto e da constante interrogação: como é possível que jovens universitários que nasceram e cresceram em Portugal, a pátria da língua portuguesa, tenham tantas dificuldades em se expressarem corretamente em português? A situação não melhorou. Muito pelo contrário! Que o digam os Professores universitários em Portugal, que, no quotidiano, lidam com alunos portugueses, "born and bred", que não conseguem formular uma frase simples sem erros de concordância e outros que tais. Portanto, a CPLP, começando por Portugal, deve ser a primeira a encorajar um projeto lei como a que agora sobe ao plenário da Casa da democracia cabo-verdiana.
Eu entendo o problema da degenerescência da língua portuguesa como uma categoria ontológica. Ela existe! É preciso pôr o dedo na ferida. No meu trabalho, tenho a oportunidade de ler e a avaliar manuscritos para publicação. Chegam-me às mãos manuscritos que nunca me passariam pela cabeça que alguém teria a coragem de os publicar naquele estado. Mas, meses volvidos, alguns desses manuscritos aparecem no mercado livreiro em Cabo Verde no mesmo estado em que os li. Regista-se uma crescente deterioração das publicações em livro em língua portuguesa no nosso país. Há livros publicados em Cabo Verde com sistemáticos e gritantes erros linguísticos. Ao que parece pouquíssimos são os que com a situação se deixam incomodar.
O mesmo acontece quando lemos as monografias universitárias. A primeira pergunta que nos vem à mente é forçosamente esta: como é possível que uma monografia com tantas falhas e imperfeições em matéria linguística tenha sido aprovada? Fala-se muito na qualidade do Ensino Superior em Cabo Verde. O Ensino Superior em Cabo Verde é, quase sempre, ministrado em língua portuguesa. A almejada qualidade torna-se uma miragem se não se apostar na promoção da língua portuguesa.
Há quem defenda que a língua portuguesa esteja longe de ser uma prioridade no momento que atravessa o nosso país. Que há outras preocupações mais urgentes como o combate à pobreza, o desemprego, etc.. Se refletirmos com alguma profundidade, não será difícil encontrar elos entre o combate à pobreza e a promoção da educação. E, em Cabo Verde, a língua portuguesa desempenha um papel cimeiro na educação.
É difícil discutir o projeto lei em causa sem abordar a promoção do crioulo cabo-verdiano. Uns argumentam ser o crioulo prioritário em matéria de política linguística nacional. No meu entender, o crioulo e o português são ambos prioritários. O crioulo deve ser oficializado e promovido, pois, como língua materna, constitui um dos pontos nevrálgicos da nossa identidade enquanto povo e enquanto nação. Mas quer se queira quer não, em matéria da diplomacia, das relações internacionais e da sua inserção no concerto das nações Cabo Verde precisa da língua portuguesa como de pão para a boca. Patriotas como eram os nativistas da centúria de Oitocentos e alguns dos maiores vultos da literatura claridosa, perceberam a importância da língua portuguesa para a projeção internacional. À medida que deslindamos os meandros da Teoria Literária e da História da Literatura em Cabo Verde, vamos dando conta de que algumas das figuras maiores da nossa literatura nutriam um grande interesse pelas línguas crioula e portuguesa. O imortal Eugénio de Paula Tavares é uma prova deste duplo amor, mas há outras provas.
Sem complexos, é preciso assumir que Cabo Verde tem na língua portuguesa a sua grande porta para o mundo. Daí a necessidade da sua promoção, daí a oportunidade do projeto lei apresentado pela Deputada Mircéa Delgado.
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