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É um país a duas vozes aquele que hoje desfilou no Parlamento. De um lado, as oposições que apontam responsabilidades ao Governo pela crise energética, sentida, vivida pelas pessoas comuns; do outro, o partido que sustenta o Governo e nega a existência de qualquer crise, defendendo tratar-se apenas de avarias pontuais...
A sessão desta quarta-feira, 28, na Assembleia Nacional era inevitável que levasse à tribuna a crise energética no país, em particular na ilha de Santiago. De um lado as oposições (PAICV e UCID), defendendo tratar-se de consequências de uma governação mal planeada e de falta de inteligência; do outro, o partido (MpD) que sustenta o Governo defendendo não se tratar de falhas políticas ou de gestão, antes de meras razões técnicas.
Crise energética afecta coração da vida coletiva
Para o líder parlamentar do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), a crise energética no país “não é um acidente, mas o retrato de uma governação mal planeada” que “não impõe responsabilização”.
Clóvis Silva intervinha no debate mensal da segunda sessão ordinária do mês de outubro sobre “Sustentabilidade energética perspetivas e desafios para a reconstrução de um Cabo Verde para todos”, o tema proposto pelo grupo parlamentar do PAICV.
Segundo o líder parlamentar, a crise energética afeta “o coração da vida coletiva”, sendo um “bem essencial” que alimenta as escolas, os hospitais, as fábricas, as famílias e a própria esperança do povo cabo-verdiano.
Ulisses sabia e não fez nada
“Sem energia não há produção, saúde, educação, segurança e não há futuro nenhum”, sublinhou Clóvis Silva, acusando o primeiro-ministro, “que sabia há muito da gravidade” da situação na Central do Palmarejo (cidade da Praia) e que “não fez nada”.
“Ele sabia da falta de peças, da dependência total de geradores a ficarem obsoletos, do atraso da manutenção preventiva, sabia e não fez nada. Não foi o país que falhou, foi o Governo deste país que falhou”, declarou Clóvis Silva, recordando que, em 2016, o seu partido entregou ao MpD uma Electra com capacidade de produção de energia igual ao dobro da necessidade de consumo da população da ilha de Santiago.
“O MpD não fez qualquer investimento, recusando-se a seguir a indicação de estudos efetuados. A situação atingiu um ponto crítico em que, para dar resposta à necessidade de consumo, deixou de haver um grupo de geradores parados. Quase todos tinham que trabalhar ao mesmo tempo e deixou de haver qualquer manutenção preventiva”, afirmou o líder parlamentar.
Clóvis Silva apontou o dedo às verdadeiras causas dos “apagões”: ausência de planificação, de manutenção preventiva e de investimento, ou seja. O que, para o parlamentar, se resume em duas palavras: “má gestão”.
Não é apenas uma crise de eletricidade, é uma crise de confiança
O líder parlamentar do PAICV lembrou, ainda, que o estudo técnico que sustenta esta análise, baseado em relatórios da própria Electra e da ARME, estima que, só no primeiro semestre de 2024, a crise energética provocou prejuízos diretos e indiretos superiores a 10,5 mil milhões de escudos, o equivalente a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
“Esta crise não é apenas de eletricidade, é uma crise de confiança. O cidadão perdeu confiança na capacidade do Estado em garantir o mínimo essencial. As empresas perderam confiança no ambiente de investimento e os municípios perderam a confiança na coordenação nacional”, enfatizou Clóvis Silva, exigindo “não só desculpas, mas decisões”. E, dirigindo-se diretamente o primeiro-ministro, desafiou-o a dizer quando é que será restabelecido o fornecimento estável de energia na ilha de Santiago, com prazos concretos e sem promessas vagas.
Falta de inteligência governativa
Na mesma linha de responsabilização do Governo foi a intervenção do deputado João Santos Luís. O também líder da União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID), considerou que a crise da energia e da água decorrem da “falta de inteligência governativa” e não da escassez de recursos naturais.
Santos Luís sublinhou que a situação atual é reflexo de “décadas de promessas e planos que ficaram por cumprir”, impedindo o arquipélago de converter as suas riquezas naturais em desenvolvimento sustentável.
Para o deputado da UCID, o custo da energia elétrica é “proibitivo para as famílias, asfixiante para as empresas e limitador para o progresso nacional”, apesar do potencial inexplorado do país em energias limpas.
Segundo João Santos Luís, o país precisa de investimentos “com seriedade e visão” em energias renováveis, aproveitando o sol e o vento que a natureza nos põe à disposição, e deu o exemplo do vulcão do Fogo que pode ser aproveitado enquanto fonte geotérmica limpa e permanente.
Romper com a dependência, criar as bases da soberania energética
Lembrando que 99 por cento (%) do território nacional é coberto por mar, Santos Luís considerou que o país terá condições únicas para produzir hidrogénio verde, a energia limpa, sustentável e exportável.
Para o deputado da UCID, chegou o momento de romper com a dependência e reconstruir Cabo Verde sobre as bases da soberania energética. Mas, para tal, é fundamental um Estado com capacidade para “planear, investir e pensar no longo prazo”, bem como líderes com coragem para inovar, que coloquem o interesse nacional acima de qualquer outro.
“A sustentabilidade energética não é apenas uma meta técnica, é um projeto político de emancipação nacional. O nosso dever, enquanto representantes do povo, é garantir que Cabo Verde tenha energia para todos, sem cortes, sem desigualdades e sem dependência”, concluiu o líder da UCID.
Não há crise energética, apenas falhas técnicas
Em sentido contrário se posicionou a deputada do Movimento para a Democracia (MpD), Isa Miranda, para quem “não há crise energética” no país, mas reconhecendo falhas técnicas de fornecimento de energia e desmentindo a oposição, ao negar tratar-se de falhas políticas e de gestão.
“Não se trata de falhas políticas ou de gestão, são questões técnicas que estão a ser resolvidas com responsabilidade e seriedade. Não há crise energética e muito menos crise energética nacional”, sustentou Isa Miranda, reconhecendo, contudo, falhas no fornecimento de energia, em particular na ilha de Santiago e no Fogo, e manifestando solidariedade, em nome do seu partido, aos que direta ou indiretamente ficaram lesados.
Isa Miranda disse que melhorias estão a ser introduzidas pelo Governo, bem como medidas e investimentos estão em curso para colmatar esta situação.
Ainda segundo a parlamentar, o programa do Governo tem como opção governativa acelerar a transição energética e o desenvolvimento da economia verde, que integra o domínio da água, do saneamento, do ambiente, da ação climática e da transformação agrícola.
“Desde 2016 multiplicam-se projetos estruturantes, como parques fotovoltaicos em Porto Novo, na ilha de Santo Antão, São Nicolau, Fogo, Maio e Brava, ampliação do parque solar de Palmarejo, na Praia, reforço da rede de alta tensão em Santiago e projetos de iluminação pública cem porcento led, com 43.342 lâmpadas instaladas, entre outros investimentos”, disse Isa Miranda.
A deputada do MpD reconheceu, contudo, que, apesar dos investimentos e resultados, ainda persistem alguns desafios que precisam ser vencidos, nomeadamente, a instabilidade da rede elétrica, limitações de armazenamento de energia e necessidade de maior interligação entre as ilhas.
C/Inforpress
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