No âmbito dos 16 dias de ativismo de luta contra a VBG, Santiago Magazine falou com Vicenta Fernandes (Foto), presidente da Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género. Uma mulher de causas. Das causas da mulher. Das causas da igualdade. Desde a década de 80 que trabalha com o ativismo social e comunitário, dedicando grande parte da sua vida profissional, social e pessoal à luta pela emancipação das mulheres no meio rural, pela luta contra a violência sobre as mulheres e pela igualdade de oportunidades entre mulheres e homens.
Santiago Magazine - Tem uma longa trajetória de trabalho com associações e com comunidades. Como surgiu essa oportunidade para enveredar por essa área?
Vicenta Fernandes - No início dos anos 80 a minha mãe era membro da OMCV e participava de várias reuniões e foi-lhe atribuída, em São Salvador do Mundo, a responsabilidade para a área da cultura e ela disse-me que só sabia dançar o “batuku”, não pensou que se tratasse da cultura de uma forma geral. E como ela conhecia a minha forma de ser, meu espírito e vontade de fazer a coisas, disse-me que estava na organização, mas que achava que era mais adequada para mim. Tinha 14 anos na altura. E comecei a frequentar as reuniões com ela e a participar das atividades. A minha mãe ajudou-me a despertar para esta área social.
Trabalhou essencialmente no meio rural da ilha de Santiago. Quais os maiores desafios em trabalhar com as mulheres nas comunidades rurais?
O primeiro desafio foi trabalhar com o combate ao analfabetismo no seio das mulheres. Em Santa Catarina liderava 40 Círculos de Cultura. E no primeiro ano ganhei um prémio a nível nacional de melhor coordenadora por ter criado um Círculo de Cultura e por ter passado da primeira para a segunda fase e ter mais número de mulheres a participarem no Círculo de Cultura. O desafio na altura era combater o analfabetismo no seio das mulheres e o planeamento familiar e proteção materno-infantil. Foram as duas áreas que quando abracei o associativismo, fiz um trabalho de terreno que tenho recordações e gosto de compartilhar com as pessoas porque foi um trabalho árduo, mas gratificante. Em termos de alfabetização, trabalhávamos com as pessoas a partir das 4 horas da tarde porque as pessoas tinham outros compromissos. Levávamos a “kafuka” e camping gaz para o Círculo de Cultura porque não havia energia elétrica para que as pessoas pudessem estudar. Houve uma situação que me marcou bastante na zona de Pau Verde, Santa Catarina, havia uma mulher que já tinha estado na emigração e ali ela ficava sozinha em casa quando o marido e outros familiares iam para o trabalho. À volta da sua residência haviam muitas lojas e a maior tristeza dela era que quando ela ia nessas lojas perguntar pelo preço das coisas e as respostas eram está lá escrito”, mas ela não sabia contar. Mais do que aprender a escrever o nome, ela queria saber fazer contas para não ter que perguntar o preço. Foi um desafio e em 1 ano ela já sabia escrever o nome e a fazer contas. Outra experiência interessante, é numa outra zona de Santa Catarina – Figueira das Naus e Achada Lém, uma comunidade de emigrantes, as mulheres que ficavam, criavam e vendiam animais e o desafio era quando os maridos vinham de férias, os dois sentassem e contassem quem tinha amealhado maior quantidade de dinheiro e não havia cultura de guardar o dinheiro no banco. Elas guardavam o dinheiro nas latas de leite. Nos diziam que antes os maridos as enganavam porque não sabiam contar, mas que tinham certeza que o dinheiro delas era mais do que o dos maridos. Essas histórias nos animavam a continuar o nosso trabalho, ao ver estas mulheres aprendendo a ler e a escrever e ajudá-las a valorizar o trabalho delas. Outro desafio para mim e que foi uma gratificação trabalhar foi com a área do planeamento familiar. A nível da OMCV em Santa Catarina, e em outros lugares, erámos quase um Ministério da Família e da Saúde, todo o trabalho de sensibilização para as mulheres aderirem ao PMI-PF foi feita por nós. Muitas vezes fomos confrontamos com os líderes religiosos que eram contra o planeamento familiar. Pessoalmente, sofri muito porque pertencia a uma família muito religiosa e sofria o preconceito porque fazia este trabalho. Tinha um padre na comunidade que sempre quando nos cruzávamos me chamava Vicenta da OMCV, era com ironia, mas sabia porque me chamava assim, por causa do trabalho de planeamento familiar e assistência aos filhos das mulheres através do programa de proteção materno-infantil. As pessoas não viam a proteção materno-infantil, mas só viam o planeamento familiar. Foi um trabalho de empoderamento da mulher, de afirmação e engajamento das mulheres neste processo e até hoje continuamos nesta senda passando do trabalho com as mulheres para o trabalho com o género.
Dedicou, trabalhando, um período significativo da sua vida à Organização de Mulheres de Cabo Verde (OMCV). Conta-nos essa história. Como foi trabalhar para a primeira associação de mulheres e para mulheres em Cabo Verde? Qual o balanço que faz dessa trajetória?
Desde os 18 anos que oficialmente estou a trabalhar nesta área e comecei com a OMCV. É uma organização que gostei de ter trabalhado, a minha mãe me identificou com ela. Devo muito a esta organização e ela também deve a mim. Aprendi muito e se hoje estou numa outra organização foi tudo graças a aprendizagem que fiz na OMCV durante todo este tempo.
Sei que agora está à frente de uma associação que trabalha no combate à Violência Baseada no Género – a Associação de Luta Contra Violência Baseada no Género (ALCVBG). Quais os principais objetivos e as metas que perseguem?
A Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género começou com um despertar do trabalho realizado na OMCV enquanto coordenadora da Rede Sol em Santa Catarina. Tínhamos algumas coisas que fazíamos e deveríamos fazer, mas não tínhamos respostas só com a Rede Sol. Chegamos a conclusão que deveria haver mais do que as respostas dadas pela Rede Sol, mas que deveria haver uma associação para trabalhar especificamente sobre esta questão, sem envolver com outras instituições ou situações e que seria mais uma valia para trabalhar com esta temática em Cabo Verde assim como apoiar o governo a cumprir as suas metas relativamente a este problema social que é da responsabilidade de todos – famílias, sociedade – e uma ONG que tem o foco voltado para esta temática. Em relação às metas queremos a diminuição de casos de VBG e focamos muito na prevenção. Claro que prestamos apoio jurídico e psicológico às vítimas de VBG, tratamos de temas como por exemplo o assédio sexual que ainda é muito pouco falado, mas o nosso foco é a prevenção e a diminuição dos casos de VBG.
A associação que preside organizou o primeiro Fórum Nacional sobre Assédio Sexual no Local de Trabalho e já teve a presença da ex-primeiro ministro espanhol Jose Zapatero. Nesses poucos anos de funcionamento, quais as principais ações e atividades realizadas?
Já fizemos várias ações e implementamos vários projetos. Podíamos ter feito mais se tivéssemos mais recursos e mais envolvimento das instituições. Primeiro, queremos agradecer o governo de Cabo Verde pela disponibilização do espaço que nos permitiu trabalhar e desenvolver os nossos projetos. As principais atividades que começamos a desenvolver foi a identificação de situações de VBG que não são faladas e divulgadas que é o assédio sexual que está intimamente relacionada com questões da saúde e começamos com a realização do 1º Fórum para falar desta temática e compreender os seus contornos e saber como tratá-lo. Foi um fórum patrocinado pelo ICIEG e Embaixada de Luxemburgo e com o apoio técnico da ONU Mulheres. Deste fórum saíram algumas recomendações que estão na fase de implementação e dependerá dos projetos em curso para a sua materialização e estamos aguardando. Temos uma luz verde para a realização de um Workshop com os dirigentes administrativos sobre o assédio no local de trabalho. Temos em curso um outro projeto que é o Inspired+ Cabo Verde financiado pela União Europeia e gerido pela ONG European Partnership for Democracy. Conseguimos materializar este projeto através deste parceiro europeu que escolheu nossa organização para trabalharmos os direitos humanos e os direitos dos trabalhadore/as doméstico/as. Este projeto se encontra na sua fase final e nos dará algumas diretrizes sobre os direitos destes trabalhadores assim como a regulamentação do trabalho doméstico e ser uma temática mais reconhecida no país. Ainda foi no quadro deste projeto que o Jose Zapatero esteve em Cabo verde porque é membro do World Leadership Alliance – Club de Madrid, uma organização parceira na implementação do projeto, para no sentido de dar visibilidade ao projeto entre as autoridades governamentais e auscultar a sociedade civil devido a experiência que ele tem enquanto governante que trabalhou muito para a igualdade de género em Espanha.
Com Zapatero
Cabo Verde tem um histórico de quatro décadas, institucionalmente falando, de luta pela emancipação das mulheres e de luta pela promoção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Você faz parte desta história. Que balanço faz do trabalho que as associações e ONGs têm desenvolvido na promoção da igualdade de género?
Desde a independência os sucessivos governos têm trabalhado com estas questões. Várias mulheres cabo-verdianas, desde a primeira hora, estiveram engajadas para trabalhar com estas questões e a colocar as suas capacidades na luta por esta causa. Agora trabalhamos com outras metodologias, temos o engajamento de jovens, com muito dinamismo e com ideias, mas ainda precisamos beber um pouco do passado que foi muito mais difícil, sem as novas tecnologias, mas criamos as escadas. Estamos num bom caminho, mas precisamos conhecer a realidade, de onde viemos e não seguir apenas porque está na moda falar de mulheres, de género e de empoderamento. É preciso conhecer a história da emancipação da mulher iniciada em 1975. Nós trabalhamos sem recursos e demos passos firmes que é necessário continuar, particularmente pelos jovens que estão a trabalhar com estas temáticas para fazerem cada vez melhor.
Essas associações e ONGs são imputadas de trabalharem exclusivamente para as mulheres. Concorda com esta perspetiva?
Não concordo. Somos uma associação que trabalha com a igualdade de género, integramos e trabalhamos com homens e mulheres. Queremos lutar contra este preconceito de que as associações defendem e trabalham apenas com as mulheres. Nós não podemos combater a violência baseada no género trabalhando só com mulheres ou só com os homens. Os dois são partes imprescindíveis deste processo. Homens e mulheres são vítimas e ambos podem ser agressores. E este é o nosso apelo para o trabalho nesta área.
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