A França tornou-se, nesta segunda-feira, 4, o primeiro país do mundo a prever o acesso ao aborto na sua Constituição da República. Dos 852 deputados e senadores reunidos, 780 votaram a favor e 72 contra. A promulgação, pelo presidente Emanuel Macron, deverá acontecer sexta-fiera, 8, Dia Internacional da Mulher.
O Congresso francês, que reúne as duas casas do Parlamento em Versalhes para votação quando há mudanças na Constituição, aprovou por ampla maioria o projeto que constitucionaliza o aborto. Dos 852 deputados e senadores reunidos, 780 votaram a favor e 72 contra.
Após a promulgação pelo presidente francês, o que deve acontecer na sexta-feira, 8, Dia Internacional da Mulher, o artigo 34.º artigo da Constituição francesa passará a ter a seguinte redação: “liberdade garantida da mulher de recorrer ao direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG, sigla usada para se referir ao aborto na França)”.
A decisão, considerada histórica por movimentos feministas e partidos de esquerda, é uma construção de séculos.
Como reporta a CNN, a defesa dos direitos femininos na França tem raízes históricas. Já no século XV, a escritora Christine de Pizan defendeu o direito das mulheres à educação. Três séculos depois, Olympe de Gouges criticou a exclusão das mulheres da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” na Revolução Francesa de 1789. E em 1949, no livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir estruturou as bases que definem o feminismo moderno ao discutir a opressão da mulher num mundo dominado por homens.
A França também é o país que, ainda no início do século passado, separou a Igreja do Estado ao aprovar em 1905 a Lei da Laicidade, afastando a religião das discussões políticas.
Esses são alguns dos fatores que explicam por que 86% dos franceses apoiam a constitucionalização do aborto, como demonstrou uma pesquisa do final de 2022 – taxa bem superior à do Brasil, onde a aprovação ao aborto é de 39%.
Com o apoio massivo da população francesa, senadores admitiram que votaram a favor do texto para evitar críticas. No último dia 28 de fevereiro, o Senado francês, de maioria direitista, aprovou o projeto por ampla maioria, com 267 votos a favor e 50 contra.
Resposta à revogação do direito nos EUA
O aborto foi legalizado na França em 1975, com a aprovação da lei proposta pela então ministra da Saúde Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. Para ser aprovado à época, o projeto se centrava na saúde pública e não nos direitos das mulheres de dispor sobre os seus corpos.
Desde então, a “Lei Veil”, inicialmente bastante restritiva, passou por várias mudanças. A mais recente, em 2022, passou a permitir abortos até a 14ª semana de gravidez, financiados pelo sistema de segurança social, sem necessidade de justificativas.
As mudanças levaram a França a ser considerada um dos países que mais apoiam o acesso ao aborto no mundo. Desde 2001, uma em cada quatro grávidas interrompem a gestação por aborto na França, de acordo com um relatório parlamentar de 2020.
Mas o gatilho para incluir o acesso ao aborto na Constituição na França veio após a decisão do Suprema Corte dos Estados Unidos de revogar o direito federal ao aborto, em junho de 2022. E também após o retrocesso dos direitos ao aborto em países como a Hungria e a Polônia.
A experiência de outros países levou a discussão da constitucionalização do aborto a sair dos círculos feministas. Políticos progressistas passaram a defender que o acesso ao aborto fosse incluído na Carta Magna para blindar o tema de eventuais tentativas de revisão também na França, sobretudo diante do avanço da extrema-direita no país.
Na sequência da decisão da Suprema Corte americana, seis projetos de lei para constitucionalizar o direito ao aborto foram apresentadas ao Parlamento francês.
O projeto de Mathilde Panot, presidente do La France Insoumise (LFI), foi o que avançou entre eles e foi aprovado na Assembleia Nacional em novembro de 2022. Mas o texto foi alterado no Senado em fevereiro de 2023, por iniciativa de partidos de direita, que substituíram o termo “direito” por “liberdade” da mulher de interromper a gravidez.
Movimentos feministas criticam a expressão, argumentando que a propriedade sobre o corpo deveria ser um direito, não uma liberdade. Também afirmam que a liberdade é a capacidade de fazer algo, enquanto o direito é a garantia de que se a mulher desejar, terá meios para interromper a gravidez. Portanto, o termo liberdade permitiria mais facilmente a um governo restringir as condições de acesso ao aborto.
Para seguir adiante, o projeto de Mathilde Panot precisaria ser aprovado novamente na Assembleia sem alterações, além de passar por um referendo, por ser uma iniciativa do Parlamento e não do governo.
A perspectiva de um referendo, que poderia ser arriscado, levou o governo de Emmanuel Macron a elaborar seu próprio texto, pressionado por movimentos feministas. Dois dias depois da aprovação do projeto de Panot no Senado, o governo chegou ao texto atual com o termo “liberdade garantida”. Uma expressão próxima da formulação do Senado, mas mais vinculativa em termos legais.
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