• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Transportes Interilhas. O Poder Judicial não tem nada a dizer?
Colunista

Transportes Interilhas. O Poder Judicial não tem nada a dizer?

Tudo aponta que o poder do Estado esteja na rua em Cabo Verde. Aqui o parlamento é o centro do poder político, pelas competências que tem no quadro constitucional. E estando assaltado pelos interesses da maioria, o país anda na corda bamba e o interesse do povo capturado. O caso dos Transportes Interilhas é paradigmático. O interesse público foi violado em todas as dimensões. O Presidente da República já falou à nação. O poder judicial não tem nada a dizer?

Nos regimes ditos democráticos, os governos emanam dos veredictos populares, que direcionam o seu voto a favor deste ou daquele partido, cujo programa mais se aproxima dos seus anseios e legítimos interesses. Ou seja, os governos existem por causa do povo, que lhes autoriza, através de eleições livres e democráticas, a cuidar dos seus interesses, enquanto órgão superior da administração do Estado. 

Em Cabo Verde, a Constituição da República vincula o governo ao princípio da defesa do interesse público, no exercício das suas funções.

Neste quadro, não há dúvidas de que o interesse público prevalece sobre todos os outros princípios da administração pública, na medida em que é a partir dele que todos os outros se cumprem. Explicando, quando se viola o princípio do interesse público automaticamente ficam violados todos os outros princípios, nomeadamente a legalidade, a transparência, a eficiência, a eficacia, e por aí fora. E quando o interesse do povo é violado, o Estado deve agir para repor a legalidade, a justiça. Aqui, o poder judicial, o ministério público, os tribunais, devem agir em defesa da justiça para o povo.

A responsabilização, a prestação de contas, são principais marcas identitárias de uma democracia. E para que contas sejam prestadas e responsabilidades assacadas, a Constituição da República de Cabo Verde estabelece, por exemplo, que o governo responde perante a Assembleia Nacional no exercício das suas funções, enquanto entidade superior da administração pública. Significa que o governo não labora num mato sem cachorro. Quando, por uma razão ou outra, tropeçar em algum princípio da administração pública previsto na lei, a Assembleia Nacional tem o poder para chamá-lo à responsabilidade, com as ferramentas que a própria lei oferece.

Muito bonito! Esta coisa do Estado de Direito é uma beleza! Um sonho!

Só que isto não funciona, ou funciona deficientemente, quando se está perante maiorias absolutas, pois, nesses casos, as bancadas das maiorias mais não têm sido do que extensões dos governos que suportam, o que estrangula o princípio de separação de poderes, e abre oportunidades para se instalar aquilo que se convencionou chamar de Ditadura da Maioria.

Assim, os parlamentos não fazem uso do poder de controlo institucional que, por decisão da Constituição, devem exercer sobre os governos. É o momento em que a realidade lança a sua luz sobre o sonho e este se dilui de uma forma dramática, feroz, sobre a amargura do quotidiano, dando o país conta de que, afinal, o rei vai nu, e que é possível que o poder esteja na rua.

Porém, lançar a toalha ao chão, dando-se por vencido, não é a melhor decisão. É preciso usar todas as armas disponíveis, sendo o poder judicial uma delas.

Os tribunais são órgãos do poder político com funções específicas no domínio da administração da justiça, em nome do povo. Assim, quando o governo viola o interesse do povo, o normal e expectável é que o poder judicial chame a si a tarefa de assacar responsabilidades, sobretudo em situações em que o parlamento não esteja a fazer, pelas razões acima apontadas.

Com efeito, administrar a justiça em nome povo é, acima de tudo, garantir a defesa do interesse público. Significando que os tribunais têm tutela sobre tudo aquilo que diz respeito aos interesses do povo.

Neste sentido, Cabo Verde pode perfeitamente vestir o rei, se, por exemplo, o poder judicial, os tribunais, o ministério público, exercerem as suas funções e responsabilidades, enquanto órgão do poder do Estado.

O Presidente da República falou ao país. A comunicação do Mais Alto Magistrado da Nação foi recebida com violência pelo governo e pela maioria parlamentar que o suporta. Está claro que a tentação é impor a lei da rolha.

O país vai aceitar este "desprezo" do governo de braços cruzados? Tudo indica que não. O povo já falou. Os operadores económicos já falaram. O descontentamento é acentuado.

Com todo este barulho, o poder judicial ainda não deu sinal de vida. O país acompanhou o debate parlamentar, mas desse ninho raras vezes saíram pardais. Tanto é que a bancada da maioria falou mais dos males do passado, do que das dores do presente. Pode-se concluir que, de tudo o que se disse e se ouviu na última sessão parlamentar, o futuro fez um recuo de 180 graus indo alojar-se nas incompetências e hipocrisias de um grupo que foi eleito sob a promessa de que teria todas as soluções para os males do país. E, passados 7 anos, o povo ainda está a ver apenas o mar, porque navios nem os de papel se veem por estas bandas.

Mas os navios podem a todo o momento aparecer no horizonte, e o rei ver assim a sua vergonha coberta, caso o poder judicial exerça a sua função, como manda a lei. Certamente está a tomar o seu tempo, a analisar o dossier. Porque não pode ficar calado, tem que agir no quadro das suas obrigações constitucionais. Este é o momento de o poder judicial, o ministério público, os tribunais, salvarem o povo, salvando assim sua face e integridade perante o país e o mundo.

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Domingos Cardoso

Editor, jornalista, cronista, colunista de Santiago Magazine