Dizem os especialistas em ornitologia que as atitudes e conduta dos políticos e governantes em tudo se assemelham ao comportamento dos pássaros. Esta correspondência é particularmente visível quando analisadas as rotinas das aves migratórias, entre norte e sul, sobre o mar atlântico.
Se dúvidas houvesse, prontamente se desvaneceriam, bastaria para tal observar as rotinas migratórias dos governantes portugueses e cabo-verdianos e suas infindáveis viagens que, em nome da suposta representação do Estado, se traduzem numa ampliação do ego e da individualidade. São inúmeras as participações em colóquios aquém e além-mar, em comemorações despropositadas e em encontros literários que, à margem das visitas diplomáticas, abrem espaço para condecorações e outros eventos migratórios, de especial relevância para o culto do self e consequente enriquecimento da ciência... ornitológica.
Nas últimas semanas as aves governantes portuguesas revelaram comportamentos bizarros, que se traduziram num encurtamento das distâncias geográficas percorridas e na circunscrição dos voos ao território nacional.
Estas práticas pouco frequentes terão sido provocadas, dizem os ornitólogos, pela proximidade das eleições legislativas portuguesas, o que terá obrigado os políticos a manterem-se perto do ninho povo, para evitar a perda dos seus poleiros gabinetes.
Agora, que esse estranho tempo eleitoral chegou ao fim e todos os gabinetes foram salvos, pode a passarada retomar aos seus comuns e inquietos hábitos migratórios.
De facto, a astuta vigilância terá sido eficaz, pois, pouco ou nada parece ter mudado na vida da passarada, senão vejamos:
António Costa é (de novo) primeiro-ministro, pelo que, serão (novamente) garantidos poleiros aos seus abastados séquitos. Costa poderá também manter bem apertado o abraço oportunista, em que tem enredado os países irmãos.
O parlamento português conta agora com ativistas, subvencionados pelo estado, que prometem salvar o mundo, revolucionar consciências globais e aderir a um sem número de bizarras missões planetárias, se sobrar tempo e financiamento, talvez se dediquem à resolução dos dramas que se abatem quotidianamente sobre as “populações locais”.
No hemiciclo terão também assento alguns especialistas que, apesar de terem feito currículo exclusivamente em organismos públicos, defendem que os outros se lancem de cabeça num moderno empreendedorismo social privado.
Por fim, teremos também algumas aves excêntricas que abnegam as ideologias para se perderem de amores por ideários e causas mainstream.
Esta passarada, recém-eleita, durante a campanha eleitoral evitou de forma astuta e sapiente um conjunto vasto de problemas e aflições, que quotidianamente afectam e esmagam a vida de “outras aves”. Pouco ou nada se disse sobre: a condição de pobreza em que vivem 2 milhões de portugueses; o crescimento célere e desumano das assimetrias entre classes sociais; o desemprego e precariedade laboral galopante; a miserável educação e saúde para poucos; ausência de políticas sérias de natalidade. Estes temas “desagradáveis” foram estrategicamente mantidos fora das discussões, debates e manobras eleitorais, ninguém ousou debicá-los publicamente, dizem as aves mais experientes que a sua inclusão nas agendas da campanha não ajuda a conquistar votos.
Para memória futura ficam momentos de campanha eleitoral particularmente infelizes e que muito dizem sobre a forma como os governantes portugueses olham para os países da CPLP, muito em particular para Cabo Verde.
(…)
Ainda o elevador da associação cabo-verdiana, em Lisboa, ia a meio e já se sentia o cheiro da cachupa. Desta vez, a comitiva aguardada na sede da associação não era a do senhor primeiro-ministro de Cabo Verde, nem de sua excelência o embaixador de Cabo Verde, mas sim a de António Costa e sua deslumbrada família partidária. Tratou-se de um retorno, disse o candidato a primeiro-ministro, a um lugar de onde "guarda recordações emotivas".
Essas “recordações emotivas” podem render uns quantos votos e, Costa sabe bem disso, pelo que jamais iria perder a oportunidade de “confraternizar” e distribuir propaganda junto da comunidade cabo-verdiana, que aquém e além-mar, representa um importante nicho eleitoral. O apoio que, num passado recente, Costa prestou às comunidades emigrantes foi determinante na edificação da sua carreira política, de tal forma que ainda hoje retira dividendos do episódio, pelo que faz questão de o manter vivo na memória dos cabo-verdianos.
Entre uma garfada de tenro feijão e um gole de vinho bom, António Costa esclarece os convivas da cachupa-rica acerca dos entraves que têm dificultado os fluxos migratórios, entre Portugal e os restantes países da CPLP. Costa, despudoradamente, designa esses entraves por “humores".
São os humores de determinados países que têm atrasado a implementação de soluções que permitam a livre circulação dos cidadãos, entre os diferentes países da comunidade. Disse Costa.
Humores António Costa?
Bu na toka bu na badja
Será que o candidato António Costa tem consciência das dificuldades e exigências que um comum cidadão cabo-verdiano enfrenta ao solicitar um visto para entrar em Portugal, mesmo que em causa esteja o mais nobre e simples dos motivos - visitar seus familiares?
O candidato Costa sabe, porventura, que muitos dos cidadãos cabo-verdianos residentes em outras ilhas necessitam de viajar até à capital do país (cidade da Praia), pagar com as suas exíguas economias essa deslocação, para assim tentarem obter de forma mais célere o visto e, mesmo assim, não terem qualquer garantia de que lhes vá ser concedido o almejado papel?
Será que António Costa acompanha as notícias acerca das inúmeras humilhações que muitos guineenses sofrem nas fronteiras dos países da CPLP?
Estou certo que António Costa conhece bem todas estas e outras dificuldades, assim como sabe que aos europeus, que desejam entrar em solo cabo-verdiano, apenas se exige uma ligação à internet para adquirir, na hora, um papelucho a troco de uma irrisória quantia monetária... Tudo em nome de um suposto crescimento económico das ilhas, indiferente às grades que aprisionam a generalidade da população, enquanto aguardam pela (prometida) autorização para pisar solo europeu!
É lamentável que, para António Costa estas e outras tormentas quotidianas, sejam designados levianamente como "humores".
Não deixa de ser curioso o timing e o local escolhidos pelo Partido Socialista, que durante quase 30 anos governou o país, para assumir e confessar arrependimento. Descaradamente, na casa dos cabo-verdianos, António Costa brindou os presentes com um cínico ato de contrição - reconheceu, em pleno exercício de propaganda eleitoral, que nos idos anos 90 Portugal cometeu um erro “ao acabar com a circulação sem limites, sem salvar laços com países de língua portuguesas".
Creio que é impossível acreditar na boa-fé deste descarado ato de propaganda, pois nestas últimas décadas não faltaram, a Costa e ao partido que representa, oportunidades para repararem o erro que levaram 29 anos a assumir!
Pois bem, o povo português acabou de dar a Costa uma derradeira oportunidade para corrigir o malogrado erro, pelo que, ao (de) novo primeiro-ministro apenas resta assumir o compromisso e remediar o passado, salvando de vez a livre circulação entre os “países irmãos”.
Esperamos que António Costa e o seu papagaio Santos - especializadíssimo em políticas afetivas externas, quando confrontados com a necessidade de viabilizarem as políticas migratórias entre os nossos países, não se escondam novamente atrás do tratado de Schengen. Pois conhecemos bem a bipolaridade de que padecem os governantes portugueses, sentem-se enormes quando se voltam para (parte de) África e falam baixinho assim que se inclinam para a Europa.
Senhor primeiro-ministro António Costa, não basta dizer que os emigrantes são “uma necessidade premente para um país envelhecido como é Portugal”. É preciso muito mais!
Temos assistido, nos últimos anos, à implementação de políticas de emigração desregradas, que não servem quem chega, nem a quem cá vive, seja qual for a sua nacionalidade. Abandonadas à sua sorte, as comunidades emigrantes mais desfavorecidas e desintegradas acabam por ficar, infelizmente, mais vulneráveis à selvajaria da exploração laboral e aos baixos salários.
A manutenção deste desnorte e profundo desrespeito, por algumas comunidades de emigrantes, fomenta, inevitavelmente, uma série de confrontos e desigualdades sociais, o que tem feito emergir sentimentos racistas e xenófobos entre as populações.
(...)
Entretanto, assim que acabou a cachupa-rica, foi servido um belo e vaporoso grogue a António Costa e sua comitiva, o que talvez justifique o lamentável disparate que o então candidato a primeiro-ministro, teve a ousadia de proferir, em pleno “território” cabo-verdiano. Passo a citar:
"Uma das riquezas da nossa gastronomia é que, ao contrário dos outros colonizadores cuja cozinha é particularmente sensaborona, sempre soubemos aproveitar o que mais podia enriquecer as nossa gastronomia e nunca desprezámos a riqueza dos produtos que “íamos encontrando e que nos trouxeram”.
Findo o repasto, e apreciado até à última gota o digestivo, a passarada bateu asas e lá foi planar sobre os poleiros do(a) Capital!
Pedro Brito,
Lisboa, outubro de 2019
Contos da Macaronésia
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